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sábado, 1 de maio de 2021

Uma Educação, de Tara Westover

Há algum tempo que não publico uma opinião sobre um livro, mas como as tenho escrito quase sempre no GR, vou recomeçar a publicá-las aqui. 

Este foi um livro de leitura conjunta para o Livros às Quatro, que hesitei muuto em ler, porque a eduação é a minha profissão, ocupa-me a maior parte dos dias e algumas noites, estou cansada dela e unca quero ler nem ver nada relacionado, quando estou em descanso. 

Asseguraram-me que não era "esse tipo" de educação, e, também porque não quis deixar de poder comentar o livro no nosso encontro, acabei por lê-lo. Ainda bem, porque  de facto é "outra"educação e foi uma leitura compulsiva, enervante, que me revoltou na mesma medida em que me encantou.


O extremismo religioso deixa-me em estado de rebelião, sobretudo quando mexe com a existência e a saúde física e mental de crianças, e quando envolve violência, prepotência masculina, cegueira face à realidade (não é sempre assim, pergunto-me) e todas as outras coisas que se vão revelando neste livro e que não são fantasia, mas facto. Não ignoro aqui que há uma forte componente de doença mental da parte do opressor, identificado pela narradora como bipolar, que é ignorada (ofuscada, obliterada?), mas também combustível para o excesso; esse facto, porém, não reduz a minha revolta. Nem ignoro que este não é caso único, o que, ao invés de me apaziguar, me perturba mais.

Impressionou-me o retrato da doença mental e da violência... pareceu-me que tudo era violento, as convicções, o trabalho, o amor, as relações, o lugar, a manipulação mental, a recusa da ciência e da medicina, da educação, a paranoia e a dificuldade que a autora teve em libertar-se, mesmo depois de se consciencializar da realidade. É, aliás, espantoso que tenha conseguido (a que custo, e com que dificuldade!) escapar às garras emocionais e mentais dessa dependência religiosa. Suponho que seja muito mais difícil quando se desconhecem outras realidades e a loucura extremista parte daqueles em quem mais a criança confia - o pai e a mãe. O retrato que faz é, ao mesmo tempo, desassombrado, franco, e cheio dos fantasmas da ilusão, da perda, da falta de confiança com que a autora terá de lidar sempre, apesar de um percurso inacreditável (que resiliência!), a provar que somos capazes de tudo, bom e mau.

Quanto à escrita, à estrutura do livro, nada a apontar: limpa, clara, honesta, emotiva sem lamechice, inteiramente adequada ao testemunho que a autora pretende passar. Uma educão, sem dúvida, e que educação!

O próximo livro de leitura conjunta A Porta, de Magda Szabó, que já comecei.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Ler para escrever. Ler também para outras coisas - muitas, todas.


Depois de anos na escrita, ainda não sei quando é que se passa de "pessoa que escreve umas coisas" a escritor. Quando é que se atravessa essa linha: quando se completa um original? Quando uma editora aposta no original? Quando surge a primeira opinião sobre um trabalho publicado? Quando se ganha um conjunto de leitores? Quando o nome é reconhecido? E se não publica durante algum tempo, um escritor deixa de o ser? E quando não publica mais nada? 

Fiz essa pergunta numa story do instagram. Este foi o resultado (sim eu sei, ainda não tenho 3 milhões de seguidores, eh!). Não houve, claro, grande consenso. Eu também não sei responder a nada disto. Talvez não seja mesmo possível encontrar uma resposta consensual... e creio que não importa, de qualquer forma. Cada um com o seu ponto de vista, não é verdade? Para um escritor, o que importa é ser lido.

E, antes disso, o que importa é LER. LER, LER, LER. 

Sou leitora desde que me lembro de saber juntar palavras. Não, desde antes disso, com imagens, com as histórias que me liam, com as que de certeza inventava. Há momentos de menos inspiração, momentos em que mal leio e muitos momentos em que não sou capaz de escrever. Mas uma coisa não existe sem a outra - ser escritor sem ser leitor? Não compreendo. Já ouvi por aí afirmações de escritores (não vou questionar se o são ou não, ainda agora concluí que não sei definir o que isso seja) ou aspirantes a escritores que "nunca leram um livro" ou "leem pouco". Como? Como?? Ser um bom leitor está na base de ser um bom escritor. Isso não significa obrigatoriamente ler apenas bons livros. É preciso ler bons livros, claro. Mas ler livros excelentes, bons, medíocres e maus ensina-nos muito sobre como se escreve. Mostra-nos o caminho que queremos seguir e quem somos enquanto escritores. Define uma base essencial de referências, de estruturas, de tópicos fundamentais que fazem a literatura. Salvam-nos de armadilhas e clichés, se estivermos atentos, ou permitem-nos usá-los "tongue in cheek". Não temos de escrever como os autores que mais admiramos (é evidente), mas eles estruturam o nosso modo de olhar para a literatura - para a escrita. 

E que mais nos oferece a leitura, enquanto escritores, mas também enquanto leitores? Como seres humanos? Muito. Oferece-nos mundo, interior e exterior. Ler aprofunda a inteligência, a criatividade, melhora a concentração, o humor. Dá-nos paisagens novas, quantas delas imaginárias, e dá-nos gente, mesmo quando o tempo, o espaço e a gente nos falha. Ajuda-nos a compreender modos diferentes de estar, de pensar, de querer: faz-nos seres humanos melhores, mais empáticos. Abre a porta a um melhor entendimento de nós mesmos. Alarga o vocabulário e a elasticidade da estrutura frásica, e com isso melhora a capacidade de descodificar qualquer tipo de mensagem, direta ou subentendida, e de comunicar, de forma direta ou entrelinhas. Saber ler evita muitos enganos, permite-nos fazer escolhas em consciência, sem sermos enganados por discursos fáceis e teorias atraentes.

E faz companhia. Consola. Distrai. Ensina. Exige. Oferece. Precisamos de tudo isto, neste momento. Sempre.

Por tudo isso, é importante incentivar a leitura nos jovens, apesar da resistência, e ajudá-los a encontrar a "sua" leitura (porque sim, acredito que todos gostamos de ler, se encontrarmos o livro certo, no momento certo), e alimentá-la sempre, mesmo que pareça ter pouca fome. E por isso é que o livro é bem essencial. É necessário que o amor da leitura nasça de bons livros? Não. É necessário que nasça. O resto é um caminho.


Nota: estou a ler Fahrenheigt 451, um pouco assustada com o seu caminho de estupidificação geral (ser ignorante é ser feliz?), que conduz à eliminação e diabolização do livro. Tantas semelhanças! Parece-me que estamos nessa senda. Será irremediável?

Imagens: Norman Rockwell

quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

A Oeste Nada de Novo - Erich Maria Remarque. Que faço eu com esta leitura?

Terminei ontem a leitura de A Oeste Nada de Novo. Há algum tempo que estava para terminá-lo. Tinha lido várias passagens quando fiz a minha pesquisa para O Ano da Dançarina (passagens terríveis) e ganhei agora coragem para lê-lo de uma ponta à outra. 

Esta é a opinião que deixei no GR. Aqui fica também, porque TEM DE SER. Leiam-no, se faz favor. Leiam-no. 

"Hesitei bastante entre escrever uma opinião a quente, com os sentimentos à flor da pele, ou deixar as ideias organizarem-se, para redigir um texto mais organizado e fundamentado. O livro merece ambas as opções, mas acabou por vencer a primeira.

Na capa, uma curta frase defende que há obras que deviam ser lidas por todas as gerações - sugerindo, presumo, que esta é uma delas. Talvez seja verdade. O certo é que, em mim, provocou um efeito devastador. Escrevo com uma sensação dorida de vazio, e alguma vergonha de senti-lo... afinal, que vivi eu que se comparasse? Não me recordo do exodo que me trouxe de África, era pequena, e de qualquer forma a violência foi outra, e vivo esta pandemia no conforto da minha casa, assistida pelo acesso ao Mundo através dos ecrãs, com alimento, livros, e gente.

Impressionou-me a absoluta ausência de silêncio, Paul refere que o som da batalha os acompanha em todos os momentos, mais próximo ou mais distante, e parece-me que, do sossego do meu sofá, posso ouvi-lo também. Impressionaram-me as condições de vida, a má alimentação, higiene e vestuário, os piolhos, a rataria, a lama, o sangue. Impressionou-me a morte dos cavalos. Impressionou-me a capacidade de improvisar e sobreviver. Impressionou-me ter-me esquecido que estes são soldados alemães... não, são meninos lançados para a morte, e nisso a nacionalidade não importa. Nem, de certa forma, a eles próprios. Estes rapazes lutam com a consciência da (quase) inevitabilidade da morte, de uma forma muito distante da percepção abstrata e distante no tempo que temos dela e, no momento em que está sobre eles e em seu redor, não lutam por uma nação, mas por si próprios e pelos que estão ali, ao seu lado, contra os que atacam do lado de lá. Quem são? Pouco importa.

Há violência de ir às lágrimas, e o autor não nos poupa. Nem deveria. É um livro de guerra e a guerra é mais do que um palco. Assistimos à destruição física de uma geração - deparamo-nos com a descrição vivíssima e crudelíssima de ferimentos de todos os tipos e, como diz Paul, o narrador, em todas as partes do corpo, e de mortes atrozes. Pareceu-me algumas vezes insuportável, não apenas a morte, mas a vida: a forma como estes rapazinhos, mais ou menos da idade dos meus filhos, sobrevivem, transitando entre uma animalidade indiferente, em que, no momento da batalha, o medo é uma coisa física que lhes assegura o instintio de sobrevivência, e momentos de leviandade, sempre que estão um pouco mais afastados da Frente. É assim que Paul o descreve. É assim que o vemos. Sobretudo, pareceu-me insuportável compreender como esta geração de rapazes atirados dos bancos da escola para a guerra, que toma forma em Paul, se vai esvaziando de ligações com os seus lugares, memórias e gentes, de perpectivas e desejos para o futuro e, quase no fim do conflito, se percebe presa entre outras duas: a que tem algo para que voltar, uma família, um trabalho, e a que, segundo diz "é agora como nós costumavamos ser, e essa geração ser-nos-à completamente estranha e atirar-nos-à para o lado". Não será sempre assim nas guerras, feitas às custas das vidas dos jovens?

A Oeste Nada de Novo é uma narrativa ficcional. Mas o que nela se encerra não é, pois não?"

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

A leitora balança, para ver se cai ou não

Diz-me o goodreads que só li 18 livros este ano: é mentira. Só li 18 cuja leitura me apetecesse registar, li muitos mais "de conforto", uns deliciosos, outros meh, um ou outro não terminei. 

Já aqui tive oportunidade de escrever que aprecio um livro por muitas razões, emotivas, estéticas, etc. Esses critérios fizeram-me atribuir 5 estrelas a 4 livros este ano: O Pecado de Porto Negro, cuja classificação alterei ao escrever esta publicação, porque quanto mais o tempo passa, mais gosto dele, A Catedral do Mar, excelente e densíssimo histórico, Illuminae, uma delícia de experiência YA de SFC, e Filho da Mãe, uma pérola de Hugo Gonçalves. Recomendo todos, como é evidente. 

(Não podiam ser mais diferentes uns dos outros, o que me prova que o meu gosto é, de facto, muito eclético... ou all over the place, se preferirem!)

Gostei menos de outros 3 livros, As Duas Vidas de Sofia Stern, O Silêncio das Águas (que muitos e muitos apreciaram), e A Modista. Houve um livro que não classifiquei, mas não me recordo porquê, possivelmente esqueci-me: foi Mistério na Cornualha, de Liz Fenwick, que acabei por não incluir na imagem. 

Pelo meio, os outros 10, uns mais próximos das 5 estrelas (como Sob um Céu Escarlate) outros das 3 (como Sete Minutos Depois da Meia-Noite, que foi elevado pela arte). 


Opiniões em https://www.goodreads.com/author/show/5816236.Carla_M_Soares

Devia ter lido mais? Claro. Li pouco e nem sempre com vontade, e nem posso culpar a pandemia: o período de total confinamento, apesar de muito trabalho, foi o mais profícuo em leituras, e sou naturalmente introvertida, o que significa que as contenções não me causaram a desesperança que muitos sentiram. Se houve outras razões para ela? Seria tema para uma publicação que provavelmente não vou fazer.

Tenho uma pilha crescente, que espera vez e espera mais vontade. Vamos ver se 2021 traz alguma destas coisas, e se traz algum novo livro meu! 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Limões na Madrugada, a primeira página: vejam como a escritora se vai habituando ao vídeo!

Isto de ir fazendo videos (a maioria falhados e apagados) tem uma coisa boa, uma pessoa habitua-se a ignorar os detalhes, uma ruga, um papinho, uma hesitação na fala ou leitura e a avançar com a cara e a coragem. E habituamo-nos a pensar "Quantos vão vê-lo, de qualquer modo?", sem nos preocuparmos realmente com a resposta.

Vós, meus queridos que vão seguindo o monster, espero que ignorem essas falhinhas, se sintam mais próximas do monstro que há em mim e, se ainda não leram, um nadinha mais curiosos com os livros! 




segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

AS RENAS TÊM FRIO - onde a escritora se atreve a ler a história que escreveu para os filhos

Quando os meus filhos eram pequenos, costumava escrever-lhes histórias, sobretudo no Natal. Esta é uma delas, aqui está, para que os graúdos a partilhem com os miúdos, se gostarem dela.


Inês Soares (www.instagram.com/an.other.ines)



sábado, 5 de dezembro de 2020

Joga a leitora - Duas recomendações numa tarde fria

 Filmar sem experiência é assim, um trapézio sem rede. Mas cá fica. Cá fico. 

Recomendo-vos dois históricos: Richard Zimler e João Pinto Coelho.


Quem vem a jogo em seguida? Não faço ideia!

domingo, 16 de julho de 2017

Seja Feita a Tua Vontade, Paulo M.Morais


Evito, por princípio, opinar sobre os livros dos autores que conheço pessoalmente, em particular sobre aqueles por quem tenho estima e admiração, independentemente de ter ou não gostado do livro. Já me sucederam ambas as coisas. Não sou capaz, porém, de fugir a umas palavrinhas no fim desta leitura e, ao contrário da maior parte das opiniões que vou escrevendo, gostaria de as ter redigido no momento em que terminei, a "quente". Sabia bem o que queria dizer, não tive oportunidade e creio que as palavras vão custar-me mais a oganizar agora.

Li alguns livros do Paulo. O primeiro, do tempo do Colectivo Nau (se tiverem curosidade, vejam o que foi aqui) foi Revolução Paraíso, depois disso li Uma Parte Errada de Mim e este Seja Feita a Tua Vontade e parece-me que este texto está tão longe do primeiro que li, não em qualidade, que nunca esteve em causa, mas em estilo e tema, como o Paulo está já do escritor (e se calhar do homem) que impulsionou a Nau. É preciso que diga, antes de mais, que gostei bastante do Revolução, mas gosto mais assim. É um critério pessoal, claro, assente sobretudo no facto desta escrita me parecer também mais pessoal. 

Confesso que, dada a temática, hesitei em pegar no livro neste momento de menos ânimo. Estava curiosa, mas não o teria lido neste momento se não fosse curto e sobretudo se não conhecesse o livro anterior. Por tê-lo lido (e gostado), sei que a escrita do Paulo não é dada ao drama, mesmo quando o tema é trágico, nem à auto-comiseração, mesmo quando há razão para tristeza. Sei também que a linguagem  crua e simples, exacta, culta, atribui à narrativa uma certa leveza, não no sentido da superficialidade, mas de uma leitura escorreita, e uma emoção contida, sem excessos de caixa de Kleenex. 

É o que acontece também em Seja Feita a Tua Vontade, que acabei por ler em meia dúzia de sessões, muitas páginas de uma assentada - e juro que só fiquei com lágrimas nos olhos uma vez, não porque o episódio seja trsite, que é, mas por ser de sentimentos bonitos, de grande generosidade, que me suscitam sempre muito mais emoção. Nestas curtas páginas, o narrador coloca-se no centro desassombrado de uma relação e de uma situação complexa com o avô, antigo médico, que escolhe a sua própria morte, e disseca-as com muita clareza de espírito. A história cinge-se a um espaço e tempo limitados pela morte do avô, mas acaba por ultrapassá-lo, porque não se narra apenas o processo difícil do fim da vida na velhice, o autor vai tecendo em seu redor, uma espiral de sentimentos e dúvidas, por vezes persistentes, de rebeliões e conciliações, de referências culturais e pequenas histórias do passado e do presente, recordações com um cunho muito pessoal. Ou não.

Porque essa é a questão. Sendo uma história na primeira pessoa, acompanhada por imagens e listas em anexo, temos por quase certo que este narrador é o autor, que este é o seu avô, em busca de uma morte digna, que as recordações são suas. Vou, porém, fazer de advogado do diabo: e se não fossem? Faria diferença na forma como leriamos este livro? A meu ver, nenhuma. A leitura continuaria a parecer-nos uma espécie de vislumbre de momentos muito intímos numa relação única, e a parecer-nos verdadeiros. Porque é o que faz um autor, sobretudo quando a escrita é tão pessoal e na primeira pessoa, diluir a barreira entre a realidade e a ficção, até não se estar certo de se estar perante um texto quase biográfico ou uma fantasia, como são todas as obras de ficção. Ou como é, afinal, a nossa memória dos outros.   

terça-feira, 6 de junho de 2017

Rio do Esquecimento, de Isabel Rio Novo

Rio do Esquecimento
Já há alguns dia que terminei a leitura deste livro pequenino, mas o cansaço e excesso de trabalho têm-me impedido de me dedicar, tanto à escrita, como a estes pequenos apontamentos que vou fazendo sobre os livros que leio. Ainda estou exausta e cheia de trabalho, pelo que a nota será curta.


O Rio do Esquecimento foi finalista Leya, e entendo porquê. A Isabel trabalha o português com mestria, oferecendo-nos descrições primorosas de ambientes, locais, pessoas, de tal forma bem trabalhada  que acaba por ter-nos presos ao desfecho de cada história e ao destino das personagens. Surpreende-me, de certa forma, que assim seja, porque aprecio uma escrita com muita interação entre os intervenientes - muito show e pouco tell - mas a Isabel, fazendo o contrário, consegue mesmo assim enredar-nos aos poucos na sua teia. 

Recuamos e avançamos no tempo - o espaço é o do Porto do século XIX - ao sabor da vontade da autora e das pequenas revelações que é preciso fazer: algumas coisas sabemos de imediato, outras parece-nos que já as sabiamos ou adivinhavamos quando sucedem, outras ainda são guardadas como pequenos segredos a conhecer mais tarde, umas agradaram-me por completo, outras um pouco menos, mas todas se encaixam no que podemos esperar de uma história crua e um pouco trágica. 

O melhor neste livro é, sem dúvida, o encantamento que as palavras, como a Isabel as usa, conferem aos locais, aos objectos e aos seres. Lê-se de um sopro.   

segunda-feira, 15 de maio de 2017

A maioria dos livros...

... vive menos tempo do que leva a nascer.
Depois da sua morte, alguns têm ocasionais rasgos de Fênix, renascendo com mais ou menos fulgor para fenecer novamente, mas a maioria permanece como costumam ficar os mortos: morto.
Um ou outro, mais raros, fazem-se (quase) perenes.

domingo, 30 de abril de 2017

O Dia dos Prodígios - Lídia Jorge

Há muito tempo que tinha este livro na estante e na lista informalísima e inconstante de livros que não podia deixar de ler um dia. Até já lhe tinha pegado algumas vezes, sem lhe dar início, mas, por uma ou outra razão, acabava por escolher outras leituras. Não conhecia a escrita de Lídia Jorge e parecia-me essencial conhecê-la. 

Desta vez, foi pega de caras. Ou de cernelha, talvez, porque comecei indecisa, e li as primeiras páginas indecisa. Não sou apaixonada pela escrita rebuscada que modela a pontuação à sua vontade, colocando pontos finais a meio das frases, para transformar uma frase em duas, três, quatro, ou que utiliza metáforas sobre metáforas ou expressões que forçam uma certa entoação poética (a "cintura dos joelhos"), e todas essas coisas acontecem neste livro. Não foi o primeiro que li com estas características, mas não me faz apreciá-las mais.

Por isso - ou apesar disso - este foi um livro que primeiro estranhei e depois deixei entranhar-se. O livro cosntitui uma curiosa crónica da vida rural nos últimos anos da ditadura (foi curioso chegar ao 25 de Abril no livro mais ou menos a 25 de Abril), em que se sentem bem os efeitos isoladores do êxodo e emigração, e está imbuído de sentimento humano, no que tem de melhor e pior, e de um certo realismo mágico - ou crendice popular - feito de prodígios, adivinhações, sonhos e memórias. A forma diluiu-se no conteúdo e acabou por dar-lhe força, sobretudo ao utilizar as expressões e modos de falar populares, e a leitura acabou por ser um estranho prazer. Acabei por aperceber-me de que já lera uma cena, da agressão aos cães da aldeia, que é para mim horrenda. Foi a única que, sabendo o que me esperava, passei adiante.

Não estou certa de ter ficado totalmente rendida a Lídia Jorge, apesar de ter gostado particularmente do seu desenho das personagens, mas fiquei decerto convencida a repetir a autora. 

segunda-feira, 17 de abril de 2017

A Mulher é uma Ilha - Audur Ava Ólafsdóttir

Resultado de imagem para a mulher é uma ilhaEste livro constituiu a minha estreia com a autora islandesa Audur Ava Ólafsdóttir, cujo primeiro nome se escreve com uma letra que, por muitas voltas que desse ao teclado e aos símbolos, não consegui descobrir. É autora de um outro romance também publicado pela Marcador, cujo nome me seduz, mas que ainda não li: Rosa Candida. 

A leitura de A Mulher é uma Ilha foi iniciada, pois, sem nenhuma ideia do que me esperava, menos ainda da estranheza deste enredo e desta escrita, simples e todavia curiosa, o que significa que fui apanhada de surpresa pelo livro e mais ainda pela rapidez com que o li, porque não haveria, à partida, nada de concreto a agarrar-me a ele. Acompanhamos uma mulher, a narradora na primeira pessoa, num momento de separação e mudança, em que, como aponta a sinopse, ela é deixada pelo amante, no mesmo dia pelo marido, fica encarregue do filho mudo da melhor amiga hospitalizada, ganha duas lotarias - numa, uma casa pré-fabricada, noutra, bastante dinheiro - e decide partir coma  criança pela Islândia, numa viagem que parece não ter destino, mas que acaba por ter um destino, e talvez um objectivo, muito concreto. Estamos em Novembro quando viaja, e os dias são curtíssimos, as noites muito longas (estamos quase no Polo Norte) e a temperatura deveria ter baixado dos 0º, com o respectivo gelo e neve, mas mantém-se nuns quentinhos 10 a 12º, com chuvas constantes, inundações e derrocadas. O clima é quase mais uma personagem, o que, sendo tão extremo e condicionante, se compreende. 

Poderá tratar-se de uma característica da escrita nórdica, ou ser característica da autora (mal conheço uma ou outra), mas há um toque de surreal no que lemos. Tudo é comum e rotineiro, e no entanto desfazado, inconsistente, a começar pela personalidade peculiar da narradora, cujo nome nunca conhecemos. As outras personagens, excepto Tumi, o pequenito, entram e saiem de cena como se pairassem e fica-se com a impressão de que a narradora nos mantém de fora, a espreitar de uma janela, sem nos revelar o suficiente para a conhecermos ou conhecermos os outros. Por um lado, não faz parte da sua forma de estar deixar os outros entrar, por outro, pouco se importa com a impressão que tenham dela. Através dos seus olhos, temos ao mesmo tempo a imagem de povo muito gregário, que se junta com frequência para o convívio, e de uma enorme solidão, de isolamento, muito ligado à paisagem. É-nos ainda sugerido um segredo no passado, algo que terá sucedido na aldeia para onde se desloca, e temos até um vislumbre do que poderá ter sido, mas tão escasso, tão indefinido, que caberá ao leitor decidir em que medida o que vai lendo em itálico é memória ou imaginação. 

A estranheza é acentuada por um humor ácido, frio, quase cruel, delicioso, que demoramos a compreender que poderá ter sido introduzido deliberadamente, e não ser apenas consequência do absurdo e de alguma crueldade. Por exemplo, a louca amiga grávida da narradora (mãe de Tumi) partilha o nome da autora... será a autora? A narradora vê-se através das lentes nada rosadas da ironia, fará a autora o mesmo consigo própria? O mesmo sucede com a morte de bichos a torto e a direito - são caçados, atropelados, afogados, pouco importa, mas há um humor associado que é subtil, terrível, ilógico. Esse humor negro permeia a forma como vê o que está à sua volta, mas o leitor tarda a entendê-lo. O mais curioso é que, depois de tudo, guardamos a impressão de uma espécie de ternura no modo como esta mulher desligada se deixa envolver e tenta corresponder às necessidades de uma criança com necessidades especiais. O miúdo, visto pelos seus olhos, é delicioso. 

Nota: vale a pena ler as receitas (não são receitas...) no fim do livro, que a Marcador optou por manter, e muito bem. 

sábado, 1 de abril de 2017

O Labirinto dos Espíritos, Carlos Ruiz Zafón

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Cerra-se a porta do labirinto do Cemitério dos Livros Esquecidos.

O Labirinto dos Espíritos fecha uma saga familiar e literária, ou, como diz o autor-personagem, "um romance em quatro tomos", que inclui A Sombra do Vento, O Jogo do Anjo e o Prisioneiro do Céu, ordem pela qual os livros foram publicados e os li. Está escrito algures nestas páginas que num livro não há início nem fim, só entradas e saídas, e que os quatro tomos, como quem os leu entende bem, não têm uma ordem específica. De facto, não é obrigatório lê-los todos, nem por uma ordem de publicação, embora exista alguma sequência. Eles ligam-se sobretudo através de personagens, acontecimentos, pelo cenário de uma Barcelona labirintica e obscura (e, neste, também de uma Madrid muito negra) e sobretudo pelos omnipresença dos livros... da literatura, o que é neste caso o mesmo.

Esta última parte da história, "virulentamente longa" (palavras do autor-personagem), reune "todos os perfumes das anteriores" e mostra as saídas do labirinto, embora não sem antes nos mergulhar nas suas sombras mais negras, as da Espanha do franquismo, com os seus crimes e perseguições, polícias secretas, corrupções a ambições, mas também as de uma certa fantasia gótica, que se arrasta de livros anteriores, e em que realidade (ficcionada) e alucinação perdem os contornos e quase se fundem. Os segredos mais feios são desvendados e selados os destinos de personalidades que se foram antevendo e às quais nos acostumamos nos tomos anteriores.

As personagens são cruas e falhas, por vezes feias, mas também muitíssimo literárias, no sentido em que todas parecem tocadas por um rasgo de dramatismo e encerram mistérios e segredos, e pícaras, como é o caso do fantástico Fermín, que continua a fazer sorrir, com as suas filosofias e tiradas, a sua personalidade de toureador sem arena e os seus Sugus. O Cemitério não existiria sem ele. *wink* Alicia Gris, motor para esta história, apresenta uma deliciosa ambiguidade, que faz dela quase um exemplo de femme fatalle de film-noir, mulher elegante e fria de pistola no bolso do casaco, profunda, anjo e demónio em simultâneo, destinada a, de uma ou de outra forma, desaparecer na bruma sem ter pertencido a nada, nem ninguém.

Demorei muito a terminar, não porque me faltasse a vontade de lê-lo, mas porque me faltou o tempo e o livro é longo.... longo... longo, mas cada sessão deliciosa de leitura se prolongou tanto quanto me foi possível e o fim fica comigo. Não é inesperado, mas isso pouco importa, quando a chave com que o autor o trancou é a certa, e os últimos parágrafos me deixaram pousar o livro com uma sensação de consolo. E ainda bem que foi assim, porque, em geral, perco-me um pouco nos livros muitos longos e acabo por distanciar-me mais da história do que gostaria e temia terminar insatisfeita.

O fechar desta história coloca cada personagem onde é natural que esteja, com os seus fins e recomeços. Nem todos os livros o exigem, claro, alguns há que suportam muito bem, exigem até, um fim em aberto. Outros pedem que se precipite histórias e personagens do cimo de um abismo - o que aqui podia ter acontecido, sem choque. Não seria, porém, tão satisfatório para mim.

Ficou-me a vontade de voltar a Barcelona, no Inverno, com menos turistas, sem pressas e com um roteiro "zafoniano" na mão. E de reler os dois primeiros livros, à luz deste. Ficaram adiadas ambas as coisas, a próxima viagem é a Florença, e há demasiados volumes por ler na minha pilha.

Uma nota menos boa: talvez por ter passado agora pelo processo intensíssimo de revisão do Dançarina, e estar ainda assim, cheia de receio de gralhas e erros, reparei em várias gralhas, mas sobretudo em inúmeras falhas de síntaxe e de concordância... Num livro desta qualidade, parece-me que, apesar da extensão, devia ter havido um trabalho mais aturado...

sábado, 25 de fevereiro de 2017

ter um anexo da alma, leitura e escrita

"No ano em que Alicia Gris chegou a Madrid, o seu mentor e titereiro, Leonardo Montalvo, ensinou-lhe que qualquer pessoa que queira conservara  sanida de de espírito precisa de um lugar no mundo onde possa e deseje perder-se. Esse lugar, o último refúgio, é um pequeno anexo da alma, onde, quando o mundo naufraga na sua absurda comédia, podemos sempre esconder-nos, trancar a porta e deitar fora a chave."
Carlos Ruiz Záfon, O Labirinto dos Espíritos


O meu é a palavra - a escrita e a leitura. 
Não posso deitar fora a chave, porque a comédia lá fora exige que regresse sempre, mas, depois de quase duas semanas em que  uma e outra me foram (quase) impossíveis, apetece-me trancar-me um bocado. 

Terminadas todas as fases que posso controlar do livro que está mesmo prestes a sair (faltam aspectos gráficos e de organização que não me competem), regressei à escrita de uma história que me é difícil. Voltei ao início, vou relendo e revendo para me localizar e voltar a estar imersa na história, e apanho-me, no fim de uma sessão matinal de uma ou duas horas, embalada e angustiada. Este pode ser o meu melhor ou o meu pior livro, posso conseguir ou não acabá-lo, pode vir a ser ou não publicado, mas sai-me do pêlo. Desconfio que não será uma história longa, porém. 

E posso regressar à leitura do Záfon, um refúgio bem menos doloroso para a palhaçada deste mundo. 

domingo, 5 de fevereiro de 2017

História de Quem Vai e de Quem Fica - Elena Ferrante

Terminado este terceiro volume de A Amiga Genial, de Elena Ferrante - História de Quem Vai e de Quem Fica - e tendo já dito tanto sobre os livros anteriores, deixo apenas umas notas: 

Resultado de imagem para história de quem vai e de quem ficaos títulos são mais geniais do que a amiga, principalmente este;
foi interessante acompanhar uma fase mais madura do desenvolvimento da narradora, Lenú, e da sua amiga Lila, e um certo esgaçar da dependência... da subserviência, é assim que diz Lenú,  desta para com Lila;
alguns momentos de discurso mais político deixaram-me uma irritação vaga, mas eram inevitáveis, tendo em conta a época de tumulto comunista-fascista em Itália (e não só) em que a história se desenrola;
por esta altura, envolvida como vou estando na vida destas mulheres, já não estou certa de saber dizer se o livro é melhor ou pior do que os anteriores;
e que fim foi aquele?? Um cliffhanger num livro desta natureza? E eu que tenciono adiar a aquisição e leitura do quarto e último volume para depois da de O Labirinto dos Espíritos e do livro Hunter, em inglês, que me foram rcentemente oferecidos pelo meu marido!

A opinião é breve, mas remeto para as anteriores:




domingo, 8 de janeiro de 2017

O Prisioneiro do Céu - Carlos Ruiz Záfon

Resultado de imagem para o prisioneiro do céuQuando li A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo, não conhecia Barcelona. A presença da cidade é tão poderosa e omnipresente em todas as suas páginas, que temos a impressão de que nada do que aqui se passa podia suceder noutro lugar. Tive a impressão de que perdia por não conhecer a cidade, que imaginei obscura, prenhe de mistérios e com um fascínio próprio. Não se concretizou por inteiro quando por fim, cheia de entusiasmo, a visitei. Encheu-se de turistas (como eu, claro), de ruído, e, mesmo com as suas ruelas a prometer mistérios, senti-me roubada deles ao correr como uma louca de um ponto turístico para outro. Preferia deambular. Parar nas esplanadas. Respirar a cidade. Talvez não seja boa turista. Nenhum dos livros já lidos perdeu o encanto por isso, como não perdera no momento da leitura, apesar de sentir uma certa confusão espacial, por não saber ao certo que tipo de ruas seriam aquelas, numa cidade tão intrincada. 

Ao ler O Prisioneiro do Céu, que talvez seja até mais simples e menos misterioso do que os livros anteriores (creio que tenho de relê-los em breve), pude acrescentar o reconhecimento de alguns lugares ao prazer da leitura de Zafón, que é exímio com ambientes e personagens, até as ausentes, ou quase, com o ritmo e a narrativa. Foi muito engraçado saber onde estavam, quando passavam pela Calle (na verdade Carrer) Hospital ou entravam no Mercado de la Boqueria, andavam pela Via Layetana ou pela Calle Condal, muito perto da qual estive instalada (na Carrer d'Estruc). Ou, claro, pelas Ramblas, lugar absurdo hoje em dia, de tão apinhado, mas que terá sido uma bela avenida um dia. 

As páginas voam. Quando lhe peguei, sem ter bem a certeza de me apetecer ler nesse momento, desapareceram logo 100 páginas. De uma assentada. De uma assentada. Só assim.

Quem leu este, provavelmente leu os anteriores. E sendo assim, que sobra ainda para dizer sobre Fermín (que não é o prisioneiro do céu, perdoem-me o "spoiler", mas é centralíssimo aqui), Daniel Sempere, o seu pai, Bea, David Martín, outros? Neste livro, porque o presente o exige, temos uma retrospectiva sobre uma parte negra da história de Fermín, e com ela mais um segmento obscuro e revoltante do franquismo. As características rocambolescas desta personagem e a forma como se expressa fizeram-me sorrir nos piores momentos, sorrir perante a degradação do espaço e do corpo, perante a dor, a enfermidade, a agressão, a injustiça, a tirania, a morte. Não encontrei grandes vestígios  da espécie de realismo mágico que dá cor às páginas do outros dois volumes, mas, embora goste muito desse artífico, não senti falta dele aqui. No fim, ficam mistérios (reais) por resolver e questões a encerrar, espero, no Labirinto dos Espíritos, que recebi como prenda de Natal, e portanto já me espera.  

Uma nota de desagrado: num livro tão bem escrito, há gatos como este... "entre a mamã e o Martín só os unia uma amizade..." (que tal "entre a mamã e o Martín só havia uma amizade" ou "a mamã e o Martín eram unidos apenas pela amizade"? Tantas hipóteses, sem absurdos gramaticais) Infelizmente, há vários deste género. Serão fruto da tradução?

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Para onde vão os guarda-chuvas - Afonso Cruz

18591734Tinha este livro há algum tempo na minha pilha dos que vão ser lidos a seguir, mas, por um motivo ou por outro, acabei por levar uma eternidade a pegar-lhe. Depois de ter começado, porém, voou entre os meus dedos. Tem mais de 600 páginas, mas lê-se como se tivesse metade, em parte porque muitas das páginas são preenchidas com lindíssimas fotografias, como porque os capítulos são, na sua maioria, muitos curtos. 

Gosto muito de Afonso Cruz, não só da sua escrita, mas da sua figura humanista, de escritor, músico, artista plástico, homem da cultura, e de uma certa placidez e bonomia nas fotografias em que aparece (não o conheço pessoalmente, talvez engane, não sei, mas é o que vejo). Gostei muito do que li dele até aqui e, no entanto, a minha leitura deste livro não foi sempre pacífica. Pelo contrário. 

Li as primeiras páginas com relutância, perguntando-me o que teria mudado em mim, enquanto leitora, que me fazia rebelar contra o estilo metafórico, carregado de imagens, poético, que tanto apreciara no autor noutros livros. Acabei por envolver-me na fantástica história, claro, nas personagens, que são tão importantes para mim, por segui-las com ansiedade, por identificar-me com algumas das suas dores, por revoltar-me com a violência, mesmo nos homens bons, e com a naturalidade com que ela é encarada, por espantar-me com a semelhança nos que nos são tão diferentes e em observar com fascínio alguma da filosofia e cultura - tão diferente a cultura, tão iguais que somos enquanto seres humanos, nos sentimentos, ansiedades e buscas. Fui esquecendo alguma impaciência com o estilo, que acabou por absorver-me, porque é bonito, elaborado e serve muito bem esta narração (Afonso Cruz é de facto um mestre do seu estilo), ainda que, de quando em quando, uma frase ou outra, uma imagem ou outra me fizessem estalar a língua ou sacudir a cabeça. Estou diferente? Sou outra leitora? Se calhar.  

Dei por mim a perguntar-me se isso representaria também uma mudança enquanto escritora, não para uma escrita mais despojada, porque já é o que faço, mas para a aceitação de que a metáfora e a exacerbação de uma certa imagética não me serve, ao contrário do que, durante algum tempo, desejei e aspirei fazer. Servir-me-à para a poesia. Talvez. 

O livro é maravilhoso, com ou sem um certo excesso verbal - para mim, neste momento, isto é capaz de passar-me -  e nem vou referir o fim, que é dolorosamente (im)perfeito. Não quero.

Nota: quase me esquecia de umas palavrinhas finais para as fotos, a remeter a vida para um jogo de xadrez, como em muitos momentos o livro refere. Muito bem. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

É mesmo para ver pelo buraco da agulha!

A péssima imagem é foto minha da capa.
Não se encontra imagem desta edição.
Habitualmente tenho de pensar um pouco antes de escrever uma opinião. Desta vez, sei com exactidão porque não gostei mais. Esta foi a minha primeira experiência com Follet e não me apaixonei. Sei que lerei pelo menos Os Pilares da Terra, mas não é provável que volte a ler um (dele) deste género. 

A história é interessante, mas não me agarrou, como acho que uma história de espiões deve fazer. Há certos livros que podemos ir lendo e desfrutando, mas um deste género deve, para mim, suscitar uma leitura compulsiva, o que não aconteceu. Há várias perspectivas, a do espião, a dos que o perseguem, a de Lucy, e interessei-me razoavelmente por elas e pelas personagens, mas, sempre que já estava semi-empolgada com uma linha narrativa, era interrompida para acompanharmos outra. Pode ser aceitável, por vezes, mas não fez nenhum sentido, por exemplo, que o climax da acção fosse suspenso para uma página de soldados a jogar às cartas - nem me lembro se no submarino alemão, se no barco inglês. Isto aconteceu outras vezes, noutros pontos da narração. 

O pior, porém, foi a tradução. Tento sempre evitar que a má tradução funcione contra o livro, porque não é culpa do original, e, sendo esta edição bastante antiga (de 1981), esforcei-me realmente para que a tradução terrível não influenciasse a leitura. Não consegui. Nunca li uma tão má. Tão má, tão má, que se fosse actual, pensaria que certas partes tinham sido metidas no tradutor da google. Assim, decerto tiveram direito a um dicionário ao lado das páginas, a assegurar uma tradução literal, palavra a palavra. Cheguei a perguntar-me se alguém que soubesse português teria lido a tradução antes de publicar, porque há frases que não fazem sentido, como "Jo equivocou o olhar contemplativo da fúria dela" e muitas, mas muitas, em que consigo ler o inglês por trás da frase, mas em que a expressão não existe dessa forma em português, como "O poder do pensamento inteligente deslizou suavemente dele". What?? Por vezes são parágrafos inteiros de parvoeira. E o "haviam", aos montes? E "ela pôs o comer"? Não, não, não. 

Li este livro, pois, dividida entre a determinação para chegar ao fim, apenas para saber como se desembaraçavam do espião e o que sucedia a Lucy (confesso que fui ler o fim para saber se ao menos isso me agradava), o desejo que isso acontecesse depressa e a preguiça de ler o livro, e um estado de permanente irritação com a maldita tradução. Chamem-me picuinhas. Não quero saber.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Arquipélago - Joel Neto

Há algum tempo que desejava ler este livro do Joel Neto, uma das estrelas da editora com que eu também trabalho neste momento, ao mesmo tempo que temia fazê-lo - já expliquei por aqui as razões, as mesmas que me levaram a pegar com muita relutância no A Amiga Genial. Tal como aconteceu com esse livro, não tinha razões para isso. Desde já agradeço à Marcador a oportunidade de lê-lo.

A quase totalidade da história decorre no espaço limitado da ilha Terceira, nos Açores, com uma pequena passagem por Lisboa. Já estive nos Açores, há muitos anos, em S.Miguel e na Terceira e, não sendo grande viajante, não tenho qualquer hesitação ao afirmar que as duas ilhas vão estar sempre entre os lugares mais bonitos que conheço. Os Açores são belos porque são um luxo para os olhos e porque guardam um quê de selvagem e cerrado sobre si próprio que senti em quase toda a parte - nos caminhos isolados, nas pequenas povoações, na extremidade de uma ponta suspensa sobre o enorme Atlântico... Parte dessa impressão poderá ter sido imaginação minha, mas, a ser assim, sucedeu porque a ilha se me ofereceu dessa forma.

Foi essa impressão que recolhi deste livro também, a de um lugar que ao mesmo tempo se oferece e se escusa ao homem, que se permite habitar, mas não domar, que é dotado de vontade própria e a impõe aos seus habitantes de forma inequívoca, estremecendo e destruindo-se, destruindo-os a seu bel prazer, conformando-os ao seu espírito de ilha, de espaço isolado e ancião, numa relação de amor e ódio, Bem e Mal e tudo o que há entre eles. Há uma história de alguma magia, o mito da Atlântida, vestígios de ritos e civilizações antigas, algumas efabulações da personagem central, que estão no limiar entre o realismo mágico e a agitação mental, mas a verdadeira magia é a do lugar. 

Depois há a realidade, a meter-se pelo meio, porque as hesitações e dúvidas de Francisco, com o qual a maioria dos homens e mulheres nos quarentas terão toda a facilidade em criar empatia. Não há nada de extraordinário neste homem, a não ser não sentir os terramotos, a não ser ter-se mudado de armas e bagagens para a Terceira, a não ser o que lá encontra e o que lá imagina, a não ser o que há de extraordinário em todos nós, de bom e de mau. A não ser a sua culpa, sentimento que, acabamos por compreender, permeia e motiva quase tudo nesta história de muitos culpados e de muitos que, não o sendo, o são por omissão.  

O livro tem um ritmo sedutor, uma escrita impecável, descrições fantásticas e bem integradas de lugares, sabores, até conceitos, personagens densas, personagens caricatas, personagens que, como Luísa, se deixam apenas antever, e tudo funciona para fazer dele uma belíssima leitura. Teria muito mais a dizer, se não me tomasse uma deliciosa indolência de Verão. Não me apetece escrever sobre o livro. Mesmo que tenha gostado muito, muito dele.


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Por Quem Os Sinos Dobram - Hernest Hemingway (opinião)

Antes de mais, devo dizer que comprei este livro numa feirinha escolar e é uma versão antiga, já amarelada. Esperava, portanto, que viesse lido e relido. Não vinha. Vinha era, à maneira dos livros antigos, por "abrir", ou seja, em cadernos fechados em cima ou lateralmente, que foi preciso cortar, com o maior cuidado, com um X-ato. Foi um engraçado jogo de paciência, mas confesso que nem sempre fui pefeitamente sucedida, por isso li-o um nadinha rasgado aqui e ali, em cima ou de lado.

A minha experiência anterior com o autor limitava-se ao O Adeus às Armas, que é um livro de guerra, a Segunda, se não me engano, lido há já muitos anos. Este, Por Quem Os Sinos Dobram, é provavelmente o seu título mais conhecido e mais conceituado. Peguei nele, porém, sem nenhum ideia do conteúdo. Sabia, é claro, que Hemingway amava Espanha, por onde andou, os costumes, o espírito do povo espanhol, as touradas, etc, e tinha ideia de que se tinha envolvido de alguma forma na guerra civil. Infelizmente, desconheço quase completamente o contexto dessa guerra, a não ser que envolveu um golpe militar, comunistas e fascistas e conduziu, em última instância, ao regime fascista ditatorial de Franco. Os detalhes da luta, porém, escapam-me, e por isso, sendo este um livro essencialmente sobre a guerra civil, tive sempre a impressão de que me faltava qualquer coisa para entender o que se passava. 

A personagem central é um jovem americano, Robert Jordan, envolvido até ao pescoço na guerra civil. Ele é dinamitista e enfurna-se no campo espanhol, atrás das linhas inimigas, com a missão de fazer explodir uma ponte. A auxiliá-lo, terá um bando partisan, de camponeses e outras gentes simples, incluindo um cigano e um antigo toureiro (ou algo parecido) e uma jovem sobrevivente de cabeça rapada, Maria, que esteve nas mãos dos fascistas e foi resgatada pelo bando. Tudo se passa no curto espaço de menos de quatro dias, entre a chegada de Jordan e a explosão da ponte, e as páginas estão repletas de narrações de episódios das vidas das personagens, ilustrativos das suas características, ou de momentos terríveis da guerra vividos ou protagonizados por elas. Estas cenas e as personagens são marcantes, sobretudo Pilar, e o que de melhor a história tem. Há uma profundidade subtil no despudor com que o autor as desnuda, às personagens e às cenas terríveis de agressão na guerra, para mostrar o que de melhor e de pior elas têm e o que a raiva e o medo fazem aos homens. Ao mesmo tempo, o amor reveste-se de uma ingenuidade desesperada, quase infantil, iludida, que é quase comovente e nos assegura, desde o início, que estamos perante Romeu e Julieta e não há nenhum futuro ali. 

A leitura, feita em na semana de férias, na praia, à beira da piscina, teve momentos de fascínio e outros, menos, de alguma impaciência, quando desejava que a acção avançasse e as personagens se detinham  mais uma vez em considerações deslumbradas sobre touros e touradas, etc. Detesto tourada e aqui o deslumbramento por ela, pelos touros de morte e respectivos matadores é muito claro. Aprendi alguma coisa sobre a guerra civil espanhola, quanto mais não seja que preciso de informar-me. Descobri no fim, com certa surpresa, que me ligara mais do que julgava às personagens e, embora o esperasse, me custou o desfecho. Fiquei ainda com a impressão de que seria um tanto autobiográfico, perdoe-me quem sabe imenso sobre Hemingway e sobre esta obra, se digo um disparate. E perdoem-me se é outro disparate, mas tenho melhores recordações de O Adeus às Armas, pelo que a minha valorização deste texto é mais intelectual do que emocional, como acontece com outros, aos quais reconheço a qualidade, sem que me tenham trazido um deleite indiscutível.

Uma nota: tenho grandes suspeitas de que a tradução não é perfeita e o texto está cheio de gralhas, o que reforça a minha ideia de que se dava menos importância a isso há uns anos.