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sábado, 1 de maio de 2021

Uma Educação, de Tara Westover

Há algum tempo que não publico uma opinião sobre um livro, mas como as tenho escrito quase sempre no GR, vou recomeçar a publicá-las aqui. 

Este foi um livro de leitura conjunta para o Livros às Quatro, que hesitei muuto em ler, porque a eduação é a minha profissão, ocupa-me a maior parte dos dias e algumas noites, estou cansada dela e unca quero ler nem ver nada relacionado, quando estou em descanso. 

Asseguraram-me que não era "esse tipo" de educação, e, também porque não quis deixar de poder comentar o livro no nosso encontro, acabei por lê-lo. Ainda bem, porque  de facto é "outra"educação e foi uma leitura compulsiva, enervante, que me revoltou na mesma medida em que me encantou.


O extremismo religioso deixa-me em estado de rebelião, sobretudo quando mexe com a existência e a saúde física e mental de crianças, e quando envolve violência, prepotência masculina, cegueira face à realidade (não é sempre assim, pergunto-me) e todas as outras coisas que se vão revelando neste livro e que não são fantasia, mas facto. Não ignoro aqui que há uma forte componente de doença mental da parte do opressor, identificado pela narradora como bipolar, que é ignorada (ofuscada, obliterada?), mas também combustível para o excesso; esse facto, porém, não reduz a minha revolta. Nem ignoro que este não é caso único, o que, ao invés de me apaziguar, me perturba mais.

Impressionou-me o retrato da doença mental e da violência... pareceu-me que tudo era violento, as convicções, o trabalho, o amor, as relações, o lugar, a manipulação mental, a recusa da ciência e da medicina, da educação, a paranoia e a dificuldade que a autora teve em libertar-se, mesmo depois de se consciencializar da realidade. É, aliás, espantoso que tenha conseguido (a que custo, e com que dificuldade!) escapar às garras emocionais e mentais dessa dependência religiosa. Suponho que seja muito mais difícil quando se desconhecem outras realidades e a loucura extremista parte daqueles em quem mais a criança confia - o pai e a mãe. O retrato que faz é, ao mesmo tempo, desassombrado, franco, e cheio dos fantasmas da ilusão, da perda, da falta de confiança com que a autora terá de lidar sempre, apesar de um percurso inacreditável (que resiliência!), a provar que somos capazes de tudo, bom e mau.

Quanto à escrita, à estrutura do livro, nada a apontar: limpa, clara, honesta, emotiva sem lamechice, inteiramente adequada ao testemunho que a autora pretende passar. Uma educão, sem dúvida, e que educação!

O próximo livro de leitura conjunta A Porta, de Magda Szabó, que já comecei.

domingo, 24 de maio de 2015

O Céu é dos Violentos - Flannery O'Connor

Foi estranhíssima para mim esta leitura. À partida, seria um livro para pôr de parte ao fim de meia dúzia de páginas, porque a temática me deixa com os cabelos em pé - a loucura religiosa e a distorção que ela traz - e as personagens, todas de alguma forma corrompidas, em luta contra a semente do fanatismo católicoplantada pela figura do velho, cuja morte dá início à narrativa, me causaram repulsa. Não sou católica nem coisa nenhuma e os excessos religiosos causam-me urticária. São perigosos e geram nas pessoas uma completa incompreensdão do mundo e uma total falta de empatia.

Todavia, não só li o livro completo, como o li, se não de forma compulsiva, pelo menos a devorar muitas e muitas páginas de cada vez, sem me ocorrer sequer deixá-lo por terminar. É assim tão bom. Um livro a que a minha consciência dá cinco estrelas e a minha emoção repele. 

A escrita é extraordinária, a fazer inveja. O enredo pouco importa, contava-se em duas linhas. O que importa é aquilo que me deveria ter afastado, mas afinal me manteve agarrada, a exploração sarcástica, cínica, quase com um terrível e impiedoso humor negro, das muitíssimo intrincadas  personagens. Nenhuma é agradável e todas existem em permanente desiquilibrio. Pressente-se em todas as coisas um ódio doentio, sem nunca se referir o ódio. Ao ler, tive sempre a impressão de que o desiquílibrio ia além da religião, que era uma coisa intrínseca, da terra, do lugar. Não sei em que época acontece a história, mas não pude deixar de imaginar o cenário de secura e desespero de histórias como As Vinhas da Ira, da grande depressão e da seca, como se a própria terra ardesse, embora se refiram saudáveis plantações de milho. 

Tarwater, a personagem principal, não tem mais de 14 anos e é quase impenetrável. Vemos nele dureza, desinteresse e incompreensão face aos outros. É crú, desagradável, mau sem saber o que é a maldade. Há uma luta interior que o absorve e o motiva, entre a semente nele plantada pelo velho, que se auto-intitulava profeta, e a tentativa de resistir ao seu domínio, mesmo depois de morto. Tarwater resiste à ideia de que o seu destino é ser profeta e baptizar, fazer renascer, neste caso, uma criança com um atraso que é seu primo. A ideia do renascimento pelo baptismo, pela entrega a Deus é omnipresente no texto, e aflitiva. Reconhecemos desde o início que Tarwater está irremediavelmente corroído pelo fanatismo, até na sua resistência a ele, na forma como resiste, e que mais cedo ou mais tarde cederá. 

O Professor, tio de Tarwater, tem dentro dele a mesma corrupção, à qual escapou recusando liminarmente a religião. Conhecemos melhor o que pensa, o que não o torna mais fácil de compreender. Há algo de fanático também nele, na tentativa de reduzir a números e razões palpáveis todas as atitudes, de arrancar às garras do velho já morto esse sobrinho, na forma como lida com o filho deficiênte, amando-o e odiando-o de forma extrema. Vamos compreendendo aos poucos a dimensão do seu desiquilibrio, e, quando o deixamos, sabemo-lo também perdido. 

Não sei quando lerei o outro livro da autora que tenho comigo e que sei centrado na mesma temática. Esta leitura foi fantástica mas escrevo esta opinião em estado de grande irritação. É o tema e uma certa maldade inconsciente, narrada . Deixa-me furiosa.  

«Como é que molhaste as ceroulas? » persistiu o condutor.
«Afoguei um menino», disse Tarwater.
«Só um?» perguntou o condutor.
«Sim». O rapaz estendeu a mão e pegou na manga da camisa do homem. Os seus lábios mexeram-se em seco durante alguns segundos. Pararam e tornaram a mexer-se, como se tivessem a força de um pensamento por trás mas nenhuma palavra para dizer. Fechou a boca, então fez nova tentativa mas não lhe saiu nenhum som. Depois,d e repente, a frase escapou-lhe súbita e sumiu-se. «Baptizei-o.»
«Hã?», disse o homem.
«Foi um acidente. Não tinha essa intenção», respondeu-lhe esbaforido. Depois, numa voz mais calma, confessou: «As palavras sairam espontaneamente, mas isso não quer dizer nada. Não há maneira de renascermos.»
«Faz sentido.» disse o homem.
«Eu só queria afoga-lo», disse o rapaz. «Só se nasce uma vez. Foram só umas palavras que me sairam a correr da boca e se entornaram na água.»
...
(pág. 201)