Este não é um ano para guarder souvenirs, embora tenha sido uma viagem e tanto.
Dou por mim, porém, neste último dia de um ano atípico, com
vontade de guardar uma última coisa de tudo: a última ida ao café, a última
refeição, o último texto que escrevo, o ultimo livro completo que li, a última
página do livro novo, a última…, o ultimo… Como se à passagem da meia noite
fossemos tombar no proverbial fim do mundo, para o inverso desta terra
que, para efeitos metafóricos, faz de conta que é plana, e quisesse levar comigo recordações.

Não é uma reação lógica. A expectativa é de que o próximo ano seja melhor do que este. Dificilmente podia ser pior, não é? (mentira, mas vá, vamos fazer de conta). Ainda assim, este ano foi muito menos mau para mim, na prática, do
que para muitos: não perdi ninguém, não perdi o emprego, não fiquei louca no
isolamento, porque sou introvertida, fisicamente preguiçosa e digitalmente
capaz - pelo menos o suficiente para trabalhar sem perder a cabeça, fazendo fichas e trabalhos de raiz, usando meets para aulas, hangouts para dúvidas, a
classroom para tudo. Estabeleci uma rotina para os dias "fechados": levantar cedo,
arranjar-me como para sair, ser carochinha de vassoura na mão uns minutos,
tomar o pequeno-almoço a ler (se possível ao sol, na minha minúscula varanda,
que era desprezada e agora é o meu mini-jardim), dançar uns minutos a ouvir
música animada, e depois começar um infindável dia de aulas, preparação de
trabalhos, correção de trabalhos. Cheguei a ter nela um certo prazer, sair não me fez falta. Pergunto-me mesmo se poderia viver assim indefinidamente...
Cantei os parabéns por zoom, tive encontros literários e lanches dessa
forma. Falei com os meus pais, em isolamento no campo, por
telefone, várias vezes por semana. Habituei-me a limpar as compras do supermercado (já me deixei disso),
e a encomendar roupa e livros online. Desabituei-me de ir trabalhar para o café
e poupei dinheiro com isso. Tive medo, como todos, mas menos do que muitos.
Comovi-me com ações de reconhecimento público do pessoal médico, tive noção da
sua inutilidade, e com canções e gestos bonitos. Comovi-me sobretudo com a solidariedade e o esforço de união,
mas não, não acreditei que no fim seriamos melhores. Pelo contrário. Que ficará tudo bem? Sim, há-de ficar. Tudo é cíclico, tudo tem um fim, o bom e o mau.
O filho fez os dezoito anos confinado. Festejamos como pudemos, e ele voltou a festejar assim que pode, com os outros amigos na mesma situação. Acabou o 12º
ano, candidatou-se à Faculdade para fora de Lisboa. Soube quando e onde teria o seu dia de Defesa Nacional. A filha perdeu a sua primeira viagem de
turismo com o namorado, a Viena, planeada há muito, já marcada e paga. Perdeu o
Erasmus em Barcelona. Perdeu cadeiras práticas que não podia fazer online.
Perdeu o ânimo, recuperou-o, perdeu-o, recuperou-o. Eu trabalhei mais do que
nunca. Li mais do que o habitual. Esperei em vão que a editora me respondesse.
Iniciei meia dúzia de histórias, não avancei nenhuma. Bebi mais vinho, fiz
muito mazagran. Fiz bolos, mas (quase) não tirei fotos para pôr no Insta. Não fiz pão, lamento.
Não viajamos no Verão, a não ser para o campo, meia dúzia de dias,
e só levamos uma amiga do filho e o namorado da filha. E o cão, claro. Foi tranquilo. Noutros anos levamos cinco, seis amigos deles e também foi giro. Fiz anos, estou mesmo na ponta final dos 40s. Em miúda, achava que
não chegaria aqui, vá-se lá saber porquê. E não estou preparada para poderar este meio século, o que fiz, o que deixei a meio, o que nunca cheguei a fazer. No regresso à vida normal (como detesto a expressão "novo normal"!), reencontrei amigas e colegas, fui testada, recomecei as aulas, com
máscara. Felizmente já conhecia quase todos os alunos, portanto sei o que está
atrás da mascara. Achei-os “moles” este período, se calhar eu mesma estou sem
vontade. Numa conversa franca com os mais velhos, do secundário, disse-me uma
aluna que a escola ainda é o que têm de mais normal. Fiquei estarrecida. Preocupada. Comovida. Não me dá alento suficiente, não recupera a confiança que já tive na
minha utilidade (ou qualidade) enquanto professora, mas dá-me um objectivo: ser
a normalidade deles, mesmo que não a minha.
No fim do Verão, deixamos o filho na a sua vida nova em Leiria. Medos redobrados, claro, coração de mãe é assim. O filho come muitas vezes massa, mas adaptou-se muito bem. Gosta do curso e isso, ao menos, é bom. A filha
candidatou-se a novo Erasmus, desta vez em Roma. Animou-se e, neste Natal,
vendeu bastantes ilustrações e prints de ilustrações. Eu habituei-me à máscara,
já não me doi sempre a cabeça ao fim do dia, e conformei-me com a moleza dos miúdos. Trabalhei muito, para mim não há moleza, mesmo quando não há vontade. Deixei de ler tanto, tenho dificuldade em concentrar-me. Continuei a escrever pouco, mas comecei a rever um texto
antigo, por prazer. A editora pediu-me por fim uma reunião e falamos por zoom. Poderá haver livro
para o ano? Veremos.

Neste Natal, comprei muitos presentes online. Preparei, pela primeira
vez em muito tempo, a celebração em minha casa: a minha filha insistiu em
muitas sobremesas, ou seja, passamos um dia e meio na cozinha e foi a melhor
parte, mesmo para mim, que não sou boa doceira e fico verdadeiramente irritada
com o trabalho doméstico. A véspera foi com os sogros, em sua casa, o dia devia
ser com os pais, mas avisaram uns dias antes e não vieram. Não levo a mal,
primeiro a segurança. Temo pelos meus sogros … mas como se recusa um Natal?
Recebi cinco livros, dois dos quais ofereci a mim mesma. Ou seja, a pilha cresceu,
é maravilhosa e há-de continuar a crescer. Faltam as estantes. Fiz binge watching de uma famosa série de época da Netflix (nova e nada fiél à História) no dia de Natal e diverti-me monumentalmente com ela. Voltei a bater (rever) texto no café.
E a seguir? Fujo a balanços, este não chega a sê-lo. Há coisas que
decidi não olhar nos olhos, tenho-o feito todos os anos, para não ver os bichos
cá de dentro, os macaquinhos do sotão, cujas vozes sussurrantes calo todos os dias.
Mas veio a vacina e o novo ano abre numa nota de esperança. Lá para o Verão
hão-de sentir-se os efeitos, ou seja, talvez o próximo ano (nem que seja o letivo)
seja mais normal, seja isso o que for. Creio que só então poderemos entender os
verdadeiros efeitos de 2020 nas nossas vidas. Não os económicos, na saúde, na
escola e aprendizagem, na organização social e do trabalho, que são mais
imediatos e visíveis. Falo dos outros, mais fundos: da nossa disposição para o
mundo, para nós próprios, para o que nas nossas vidas ficou suspenso. Mudamos,
ou não?
Entretanto, estamos fartos de 2020. Vamos pôr uma bela mesa, no sossego das nossas casas. Quando for por fim meia noite, levantemos um copo bem alto: QUE VENHA 2021!