Este livro constituiu a minha estreia com a autora islandesa Audur Ava Ólafsdóttir, cujo primeiro nome se escreve com uma letra que, por muitas voltas que desse ao teclado e aos símbolos, não consegui descobrir. É autora de um outro romance também publicado pela Marcador, cujo nome me seduz, mas que ainda não li: Rosa Candida.
A leitura de A Mulher é uma Ilha foi iniciada, pois, sem nenhuma ideia do que me esperava, menos ainda da estranheza deste enredo e desta escrita, simples e todavia curiosa, o que significa que fui apanhada de surpresa pelo livro e mais ainda pela rapidez com que o li, porque não haveria, à partida, nada de concreto a agarrar-me a ele. Acompanhamos uma mulher, a narradora na primeira pessoa, num momento de separação e mudança, em que, como aponta a sinopse, ela é deixada pelo amante, no mesmo dia pelo marido, fica encarregue do filho mudo da melhor amiga hospitalizada, ganha duas lotarias - numa, uma casa pré-fabricada, noutra, bastante dinheiro - e decide partir coma criança pela Islândia, numa viagem que parece não ter destino, mas que acaba por ter um destino, e talvez um objectivo, muito concreto. Estamos em Novembro quando viaja, e os dias são curtíssimos, as noites muito longas (estamos quase no Polo Norte) e a temperatura deveria ter baixado dos 0º, com o respectivo gelo e neve, mas mantém-se nuns quentinhos 10 a 12º, com chuvas constantes, inundações e derrocadas. O clima é quase mais uma personagem, o que, sendo tão extremo e condicionante, se compreende.
Poderá tratar-se de uma característica da escrita nórdica, ou ser característica da autora (mal conheço uma ou outra), mas há um toque de surreal no que lemos. Tudo é comum e rotineiro, e no entanto desfazado, inconsistente, a começar pela personalidade peculiar da narradora, cujo nome nunca conhecemos. As outras personagens, excepto Tumi, o pequenito, entram e saiem de cena como se pairassem e fica-se com a impressão de que a narradora nos mantém de fora, a espreitar de uma janela, sem nos revelar o suficiente para a conhecermos ou conhecermos os outros. Por um lado, não faz parte da sua forma de estar deixar os outros entrar, por outro, pouco se importa com a impressão que tenham dela. Através dos seus olhos, temos ao mesmo tempo a imagem de povo muito gregário, que se junta com frequência para o convívio, e de uma enorme solidão, de isolamento, muito ligado à paisagem. É-nos ainda sugerido um segredo no passado, algo que terá sucedido na aldeia para onde se desloca, e temos até um vislumbre do que poderá ter sido, mas tão escasso, tão indefinido, que caberá ao leitor decidir em que medida o que vai lendo em itálico é memória ou imaginação.
A estranheza é acentuada por um humor ácido, frio, quase cruel, delicioso, que demoramos a compreender que poderá ter sido introduzido deliberadamente, e não ser apenas consequência do absurdo e de alguma crueldade. Por exemplo, a louca amiga grávida da narradora (mãe de Tumi) partilha o nome da autora... será a autora? A narradora vê-se através das lentes nada rosadas da ironia, fará a autora o mesmo consigo própria? O mesmo sucede com a morte de bichos a torto e a direito - são caçados, atropelados, afogados, pouco importa, mas há um humor associado que é subtil, terrível, ilógico. Esse humor negro permeia a forma como vê o que está à sua volta, mas o leitor tarda a entendê-lo. O mais curioso é que, depois de tudo, guardamos a impressão de uma espécie de ternura no modo como esta mulher desligada se deixa envolver e tenta corresponder às necessidades de uma criança com necessidades especiais. O miúdo, visto pelos seus olhos, é delicioso.
Nota: vale a pena ler as receitas (não são receitas...) no fim do livro, que a Marcador optou por manter, e muito bem.
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