Deixei passar demasiado tempo entre textos, e os dias em Florença começam a aglutinar-se numa impressão geral e em recordações globais, em que já se me torna difícil distinguir o que fiz em cada dia. A agravar a questão, há o caderno abandonado. Estou nos últimos registos: deixei de fazê-los a meio do terceiro dia, o "dia dos museus".
Em breve, terei de assumir uma aproximação diferente: em vez de continuar dia a dia, ou em parcelas de dias, para não estender o texto, vou destacar momento, lugares... em quantas publicações irá resultar, não sei. Pode ser uma apenas, podem ser muitas.
Por ora, há caderno. Avancemos.
Pitti
O Palazzo Pitti, do lado de lá da Ponte Vecchia, é um monstro. Um largo enorme, em declive, e o palácio em cima, por trás dele os jardins. Compramos bilhetes, passamos pela segurança, entramos. Subimos vários lances de escadas e ocorre-me que, outrora, homens e mulheres deviam ter coxas de pedra. Por fim começamos a visita e o Pedro depressa se irrita, porque, onde esperava ver quartos, salas, a cozinha, os banhos, e descobrir como viviam os Médici, vemos afinal retratos e mais retratos antigos de figuras relevantes, em salas lindas de tectos pintados, paredes forradas e cortinados pesados e veludo. Há corredores cheios de caras novas e velhas, quase todas feias, uma ou outra mais composta. Descubro uma mulher lindíssima, um homem bonito da cada d'Este, outro feíssimo, um Médici. Reconheço alguns nomes, muitos não, mas sempre gostei de retratos e esta transformação em museu de figuras e expressões em nada me incomoda. Depois, por fim, meia dúzia de salas opulentas onde terão habitado os donos do palácio, passando pela do trono e terminando nos aposentos da rainha. Temos de espreitá-los, porque um cordão impede a entrada. Proliferam veludos e brocados, dourado e cristal, brilho e excesso. O palácio testemunha o poder e riqueza dos Médici e não seixa dúvidas sobre quem eram, a par da Igreja, tão predominante, os donos desta cidade maravilhosa.
Imagino homens e mulheres percorrendo estas salas, sentados nas banquetas, sussurrando conspirações, e ocorre-me, a despropósito, o imenso trabalho de acender (e substituir) todas as velas nos lustres e castiçais de complexo desenho e o perigo de incêndio que tudo aquilo terá constituído. Passamos pela Sala Branca, decerto uma sala de baile, mas não temos acesso à prometida exposição de trajes (que não encontramos e concluímos estar fechada). O Pedro está tão aborrecido com o Palazzo, e eu tão cansada, que depressa concordamos que não vale a pena pagar o bilhete para visitar os jardins. Deambulamos pelo "outro lado" de Florença, de mapa na mão, à procura de mais qualquer coisa para ver. O tempo que paramos para beber alguma coisa numa esplanada mal chega para que as pernas me deixem de tremer de cansaço, mas continuamos sob o sol escandante e acabamos por atravessar a ponte para o "nosso lado" pela ponte Americo Vespucci. Cada um de nós vai um pouco insatisfeito, por razões diferentes. Eu, porque gostei de Pizzi, mas não do que veio depois, não quero andar por toda a parte até que a exaustão me impeça gozar a cidade. Talvez seja má turista, mas quero parar mais vezes, parar mais tempo, não sinto necessidade de procurar cada quadradinho laranja no mapa, para ver se é monumento. O Pedro pela razão oposta: detestou Pizzi e não encontrou mais nada aberto, mais nada para visitar daquele lado da cidade. Temo que isto se torne complicado para mim. Outra vez.
Música no Palazzo
Reconcilio-me com esta viagem logo depois de um duche e algum descanso, quando paramos num cantinho bonito, para vinho branco, queijo e prosciutto, e ali ficamos algum tempo. Isto sim! Tentamos depois encontrar um restaurante que me encantara na véspera, mas às tantas já não sabemos onde estamos e acabamos, meio irritados, por comer onde calha. A minha pasta é quase igual à que comi, mas bastante picante. Tenho tanta sede que o vinho não me satisfaz, nada me sabe ao que devia e o mundo só se endireita quando, depois do jantar, bebo finalmente uma garrafa inteira de água.
Estamos muito perto do meu querido Palazzo Vecchio e, ao caminharmos nessa direção, apercebemo-nos da música. Há música em muitas ruas desta cidade, músicos que tocam violino, violão, viola, outras coisas nos passeios e praças. Ontem, duas jovens de longos vestidos tocavam violino numa praceta, mas isto é diferente: há um concerto em frente ao Palazzo, coisa de orquestra inteira (pequena, claro), com muita gente de pé a assistir. Ficamos também a ver o que é. O entusiasmo estoira na assistência quando, terminada a peça que tocavam à nossa chegada, o maestro explica, em italiano e depois inglês, que vão tocar... Star Wars! E tocam, e é maravilhoso! Troco um olhar de prazer e um sorriso com uma desconhecida, que nem sei se é turista ou habitante local, e penso em como a música pode ser unificadora. Gostava de ser capaz de reter este prazer e toma-me a ideia, despropositada no momento, de que a música é como a poesia, um êxtase momentâneo, que depressa esmorece, mas que permanecem ambas, uma na partitura, outra na página, para que o gozo possa repetir-se, sempre diferente. Todos reconhecem o tema do filme, transformado numa peça belíssima pela composição de John Meyer e pela orquestra e, no fim, o aplauso é estrondoso. A praça quase encheu. Hesitamos em ficar ou ir e eu, com voltade de ficar, atiro "E se a seguir tocassem James Bond?." Estou a brincar, claro. Cada 007 tem o seu tema, porque haviam de ir buscá-los? Quais? O maestro agradece e declara que, dentro do tema "música para cinema", se seguirão três temas de... James Bond! Depois de Bond, tocam O Bom, O Mau e O Vilão e nós ficamos, até se esgotarem todos os temas que a orquestra trazia planeada e o maestro, espantado com o entusiasmo do público, improvisar com a orquesta: tocam uma marcha americana antiga, que faz lembrar vagamento o hino. Só depois disso saímos dali.
Vou cansadíssima, mas com o peito cheio. É isto, afinal, que me dá gosto.
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