Elena Ferrante e a sua tetralogia andam, nos últimos tempos, nas conversas sobre livros e nas mesas de cabeceira de meio mundo e, por isso mesmo, estava decidida a não ler. Receio sempre desapontar-me ou, pelo contrário, deparar-me com qualquer coisa de tão genial que me estrague para a escrita e, por pura vergonha, seja incapaz de voltar a escrever. Já devia ter aprendido que ambas as coisas são improváveis, a primeira porque, quando as opiniões são na generalidade tão boas, a obra também costuma ser (claro que pode dar-se o caso de não apreciar a escrita ou a história, por uma questão de gosto pessoal) e a segunda porque tenho lido muitas coisas maravilhosas e ainda não deixei de escrever. Quando muito, vou morrendo de vergonha enquanto me esforço mais.
Não me deterei muito a elogiar a simplicidade do livro, um desses que prova que não é preciso que se exija um dicionário ou se exiba frases terrivelmente intrincadas (aliás, as protagonistas são crianças ainda, que sentido faria?) para ser complexo e intenso. A estrutura é, de certa forma, elaborada, não segue com toda a linearidade a linha do tempo, mas a das recordações da personagem-narradora, que vai preenchendo com elas o esqueleto dos seus anos de crescimento com Lilla (ou Lina? oscilou entre os dois e não sei se é de propósito ou gralha) num bairro pobre de Nápoles. Não há grandes recuos, mas pequenas digressões que nos conduzem de novo ao ponto de início de uma certa narração. E há, claro, a complexidade de um bairro labirintico, não tanto na sua composição, porque o entendemos bem, mas nas relações entre os habitantes. Confesso que aqui e ali me perdi nos nomes e sobrenomes das personagens, mas pode ser culpa minha, que sou péssima com eles (no Cem Anos de Solidão tive de desistir, adorei a leitura sem me preocupar com as montanhas de Aurélios Buendias... ou também já confundo este nome?)
O bairro surge, na visão infantil de Lenú, narradora, como um mundo aparte, uma aldeia separada do resto de Nápoles, onde tudo acontece segundo as regras do próprio bairro. É quase um filme de Fellini, este bairro, com a sua pobreza e sujidade, a gritaria, a violência dos amores e ódios, a promiscuidade nas vivências diárias em que todos sabem tudo e todos se envolvem em tudo. E tudo isto vamos compreendendo, ao longo das páginas do romance, conforme a própria Lenú o compreende.
O bairro surge, na visão infantil de Lenú, narradora, como um mundo aparte, uma aldeia separada do resto de Nápoles, onde tudo acontece segundo as regras do próprio bairro. É quase um filme de Fellini, este bairro, com a sua pobreza e sujidade, a gritaria, a violência dos amores e ódios, a promiscuidade nas vivências diárias em que todos sabem tudo e todos se envolvem em tudo. E tudo isto vamos compreendendo, ao longo das páginas do romance, conforme a própria Lenú o compreende.
O que me tocou, de forma muito pessoal, foi a narradora. Devia ter sido Lilla a intrigar-me? Talvez, ela é apresentada pela própria Lenú como uma criatura quase misteriosa, má, inteligente, genial, com uma compreensão para além do normal das coisas, alguém que está sempre um ou dois passos adiante do resto do bairro e da própria Lenú. Inalcansável, mesmo antes de ser bela ou distinta. Talvez seja. Mas a mim, fascinou-me Lenú, porque a compreendi. O que a perturba em criança, na puberdade, como jovem adolescente, foi o que a mim me atormentou e, ressalvando as devidas distâncias de contexto social - não faço ideia do que será crescer numa pobreza tão extrema nem num bairro de características fellinianas, no pós guerra - reconheço-a. Sei quem ela é quase ao ponto de ela ser eu e eu ser ela, nas dúvidas e nas tristezas que a atormentam. O livro não é obscuro, não é deprimente, mas tem-se um pressentimento constante de uma desgraça ali mesmo ao virar da esquina e de que não será possível a nenhuma destas jovens um fim feliz, que no seu caso representaria apenas fugir ao padrão de violência, desamor e insatisfação do bairro. Aflige-me, a mim que, quando fecho portas às personagens, gosto de deixar-lhes uma janela aberta. Temo até que no fim me apeteça atirar os quatro livros à parede. Por ora, contento-me com alguma luz que vai brilhando nestas páginas e com a esperança de que o tom continue a ser assim, cru mas sem excessivo fatalismo.
De forma menos pessoal, há a referir que Ferrante é excelente na sua exploração, sem drama, sem lamentação, sem lamechice, tanto das dores de crescimento das raparigas, das ansiedades e alegrias que a adolescência traz, tanto como da vida do bairro e das circunstâncias sociais (tão subtil!) da Itália dos anos 50. Ninguém sabe ao certo se Ferrante é uma mulher. Se não é, tiro-lhe o chapéu. Se é, tiro-lho na mesma. E agora com licença, que vou ali à Fnac comprar os outros volumes. Quero saber o que será feito de Lilla (Lina?), mas sobretudo de Lenú.
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