Um pequeno texto, que não chega a ser um conto.
Trago as recordações agarradas à barriga. As grandes ocasiões e os momentos especiais fazem-se, parece, quase todas no prazer imediato da mesa, nenhum há que não mereça um jantarinho, a dois ou a muitos.
Trago as recordações agarradas à barriga. As grandes ocasiões e os momentos especiais fazem-se, parece, quase todas no prazer imediato da mesa, nenhum há que não mereça um jantarinho, a dois ou a muitos.
Trago pois na barriga a
recordação do meu primeiro Natal na mesa dos grandes, o último em que estivemos
todos juntos. Tinha passado o metro e setenta e a barreira dos treze anos no
Verão de 98 e vi-me, pois, promovido de um momento para o outro à digna condição
de adolescente – descobri depressa e sem celebração que não havia nada de digno
nela. A barriga não me ficou grata na altura, que o apreço pelos sabores do Natal
adulto só se aprende em adulto. O rapaz que eu era sentou-se entre a tia-avó e
o primo Alfredo, e irradiou um orgulho intenso, até ao momento exacto em que a travessa
de bacalhau fumegante foi colocada mesmo à minha frente. Lancei um olhar de
desespero à minha mãe, que mo devolveu sem piedade e eu engoli em seco… é
estranha a nitidez com que recordo o olhar da minha mãe e do meu gesto, um quase nada. Quase quebrei, nesse momento, mas a avó também
me tinha debaixo de olho e endireitei as costas. Comeria bacalhau como um
adulto, enquanto as crianças comiam uma bela bolonhesa.
A avó estava preocupada comigo... com o meu comportamento. Todos os Natais se preocupava com tudo, na verdade, com
a comida, com o avô e com os netos, antes desse e muito, muito mais, depois desse, com a decoração, com o penteado, que, dizia
ela, tinha abatido com o vapor das panelas. Eu fitava, desconfiado, o ninho alto
que era o seu cabelo, tentando adivinhar que alturas teria atingido antes de
abater. O avô comia e bebia toda a noite às escondidas da avó, como um miúdo,
enquanto ela protestava “olha o estômago”, “olha o coração!”, mas fingia que
não via mais um sonho desaparecer. A tia, ao contrário, queixava-se da linha,
refilando com os quilos a mais na balança, e eu pensava que, na verdade,
ninguém a forçava a comer… e que bem comia!
A mãe, as duas mães ali presentes, mantinham um olho nas crianças, a
minha irmã e os meus primos e primas, que, de jantar terminado, rondavam os
presentes na árvore. Nesse ano, já não estava com eles, mas invejava-os,
enquanto suspendia a respiração e metia garfadas de bacalhau na boca.
A minha melhor recordação desse
Natal é da tia-avó, que cheirava a pó de
talco e naftalina, odor que só mais tarde vim a identificar, e não se lembrava
da minha existência. Começou por fitar-me com desconfiança, quando me sentei ao
seu lado, e perguntou “Mas quem é este homem?” Chegou a levantar as mãos
encarquilhadas na minha direção e eu desejei intensamente que me empurrasse da
cadeira abaixo, o que teria sido hilariante, ou fizesse uma das suas famosas
birras, que envolviam sempre muitas lágrimas de crocodilo, que secavam assim
que lhe punham à frente um chocolate ou um cálice de Porto, e muitas lamentações
“Aiii, já ninguém me quer”, “Aiii, ninguém me respeita”, ela, que vivia com a
filha viúva e, segundo dizia a minha mãe, lhe infernizava o dia e a noite. A tia-avó
desapontou-me: sorriu-me com uma dentadura de dentes demasiado grandes e demasiado
brancos e deu-me uma palmadinha no braço.
Foi ela quem me distraiu do tédio
desse jantar. Primeiro, porque comia com um bater de castanholas da dentadura que
colocava na cara da avó uma expressão de impagável consternação. O tio Alfredo,
o mais jovem dos adultos, trocava comigo olhares de júbilo e, de quando em quando,
batia ruidosamente os dentes na minha direção. Depois, porque a tia tinha os olhos
baços e tremiam-lhe as mãos, mas não lhe falhava nem garfio, nem faca: comeu e
bebeu mais do que, julgava eu, pudessem comer e beber as pessoas velhas, tão
depressa que me perguntei se teria uma dentadura a turbo. Por fim, de prato já
vazio, enquanto os adultos ainda terminavam, começou a cabecear e a inclinar-se
na minha direção. A avó fez-me sinais desesperados para endireitá-la
discretamente, mas eu fiz de cionta que não via. Queria que caísse em cima de
mim, para ver o que acontecia. Quem a safou foi o tio Alfredo, que saltou do
lugar e a apanhou por um triz… Ela acordou com um sobressalto e desatou a bater
nas mãos do tio, aos berros “Mas quem é este homem?” Depois disso, com pena
minha, acabou o divertimento. Levaram-na para o quarto da avó, para descansar,
e deixaram-na dormir enquanto nos empanturravamos de açucar e abriamos os
presentes.
As recordações desse jantar ridículo
revestiram-se depressa de ternura e melancolia. Entre esse meu primeiro Natal
adulto e o meu segundo Natal adulto, a expressão perdeu significado. A tia-avó
morreu do coração. O tio Alfredo, que é médico, arranjou trabalho na Austrália e não pode vir. A tia casou-se com o tal
fotógrafo, e as vésperas passaram a ser um ano em cada família. Nesse ano, o
primeiro, calhou na dele. Os meus pais divorciaram-se, e eu e a minha irmã
passamos a dividir-nos entre a véspera com a mãe e o dia com o pai. Os
presentes a dobrar e as viagens à Austrália, concluímos, não compensavam os
lugares vazios à mesa. No ano seguinte, eramos muito menos à hora da ceia e
sentamo-nos todos, adultos e crianças, numa nostalgia vestida de sorrisos, que
demorou anos a esbater-se. Antes da ceia, falamos com o tio por skipe. Estava
de mangas curtas e pronto para passar o Natal na praia. Depois, a avó
chamou-nos a todos. As crianças passaram a sentar-se com os adultos. Ao meu
lado, em vez da tia velha e das suas castanholas, estava a chata da minha irmã
mais nova. Do outro lado dela, em vez do
tio Alfredo, estava a minha prima Luísa, que acabara de fazer os treze anos,
mas nunca conheceria o gosto particular de ser promovida à mesa dos adultos.
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