Páginas

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

O primúltimo Natal, faz-de-conta-que-é-uma-recordação

Um pequeno texto, que não chega a ser um conto.

Trago as recordações agarradas à barriga. As grandes ocasiões e os momentos especiais fazem-se, parece, quase todas no prazer imediato da mesa, nenhum há que não mereça um jantarinho, a dois ou a muitos.   

Trago pois na barriga a recordação do meu primeiro Natal na mesa dos grandes, o último em que estivemos todos juntos. Tinha passado o metro e setenta e a barreira dos treze anos no Verão de 98 e vi-me, pois, promovido de um momento para o outro à digna condição de adolescente – descobri depressa e sem celebração que não havia nada de digno nela. A barriga não me ficou grata na altura, que o apreço pelos sabores do Natal adulto só se aprende em adulto. O rapaz que eu era sentou-se entre a tia-avó e o primo Alfredo, e irradiou um orgulho intenso, até ao momento exacto em que a travessa de bacalhau fumegante foi colocada mesmo à minha frente. Lancei um olhar de desespero à minha mãe, que mo devolveu sem piedade e eu engoli em seco… é estranha a nitidez com que recordo o olhar da minha mãe e do meu gesto, um quase nada. Quase quebrei, nesse momento, mas a avó também me tinha debaixo de olho e endireitei as costas. Comeria bacalhau como um adulto, enquanto as crianças comiam uma bela bolonhesa. 

A avó estava preocupada comigo... com o meu comportamento. Todos os Natais se preocupava com tudo, na verdade, com a comida, com o avô e com os netos, antes desse e muito, muito mais, depois desse, com a decoração, com o penteado, que, dizia ela, tinha abatido com o vapor das panelas. Eu fitava, desconfiado, o ninho alto que era o seu cabelo, tentando adivinhar que alturas teria atingido antes de abater. O avô comia e bebia toda a noite às escondidas da avó, como um miúdo, enquanto ela protestava “olha o estômago”, “olha o coração!”, mas fingia que não via mais um sonho desaparecer. A tia, ao contrário, queixava-se da linha, refilando com os quilos a mais na balança, e eu pensava que, na verdade, ninguém a forçava a comer… e que bem comia!  A mãe, as duas mães ali presentes, mantinham um olho nas crianças, a minha irmã e os meus primos e primas, que, de jantar terminado, rondavam os presentes na árvore. Nesse ano, já não estava com eles, mas invejava-os, enquanto suspendia a respiração e metia garfadas de bacalhau na boca.

A minha melhor recordação desse Natal é da tia-avó, que  cheirava a pó de talco e naftalina, odor que só mais tarde vim a identificar, e não se lembrava da minha existência. Começou por fitar-me com desconfiança, quando me sentei ao seu lado, e perguntou “Mas quem é este homem?” Chegou a levantar as mãos encarquilhadas na minha direção e eu desejei intensamente que me empurrasse da cadeira abaixo, o que teria sido hilariante, ou fizesse uma das suas famosas birras, que envolviam sempre muitas lágrimas de crocodilo, que secavam assim que lhe punham à frente um chocolate ou um cálice de Porto, e muitas lamentações “Aiii, já ninguém me quer”, “Aiii, ninguém me respeita”, ela, que vivia com a filha viúva e, segundo dizia a minha mãe, lhe infernizava o dia e a noite. A tia-avó desapontou-me: sorriu-me com uma dentadura de dentes demasiado grandes e demasiado brancos e deu-me uma palmadinha no braço.  

Foi ela quem me distraiu do tédio desse jantar. Primeiro, porque comia com um bater de castanholas da dentadura que colocava na cara da avó uma expressão de impagável consternação. O tio Alfredo, o mais jovem dos adultos, trocava comigo olhares de júbilo e, de quando em quando, batia ruidosamente os dentes na minha direção. Depois, porque a tia tinha os olhos baços e tremiam-lhe as mãos, mas não lhe falhava nem garfio, nem faca: comeu e bebeu mais do que, julgava eu, pudessem comer e beber as pessoas velhas, tão depressa que me perguntei se teria uma dentadura a turbo. Por fim, de prato já vazio, enquanto os adultos ainda terminavam, começou a cabecear e a inclinar-se na minha direção. A avó fez-me sinais desesperados para endireitá-la discretamente, mas eu fiz de cionta que não via. Queria que caísse em cima de mim, para ver o que acontecia. Quem a safou foi o tio Alfredo, que saltou do lugar e a apanhou por um triz… Ela  acordou com um sobressalto e desatou a bater nas mãos do tio, aos berros “Mas quem é este homem?” Depois disso, com pena minha, acabou o divertimento. Levaram-na para o quarto da avó, para descansar, e deixaram-na dormir enquanto nos empanturravamos de açucar e abriamos os presentes.


As recordações desse jantar ridículo revestiram-se depressa de ternura e melancolia. Entre esse meu primeiro Natal adulto e o meu segundo Natal adulto, a expressão perdeu significado. A tia-avó morreu do coração. O tio Alfredo, que é médico, arranjou trabalho na Austrália  e não pode vir. A tia casou-se com o tal fotógrafo, e as vésperas passaram a ser um ano em cada família. Nesse ano, o primeiro, calhou na dele. Os meus pais divorciaram-se, e eu e a minha irmã passamos a dividir-nos entre a véspera com a mãe e o dia com o pai. Os presentes a dobrar e as viagens à Austrália, concluímos, não compensavam os lugares vazios à mesa. No ano seguinte, eramos muito menos à hora da ceia e sentamo-nos todos, adultos e crianças, numa nostalgia vestida de sorrisos, que demorou anos a esbater-se. Antes da ceia, falamos com o tio por skipe. Estava de mangas curtas e pronto para passar o Natal na praia. Depois, a avó chamou-nos a todos. As crianças passaram a sentar-se com os adultos. Ao meu lado, em vez da tia velha e das suas castanholas, estava a chata da minha irmã mais nova.  Do outro lado dela, em vez do tio Alfredo, estava a minha prima Luísa, que acabara de fazer os treze anos, mas nunca conheceria o gosto particular de ser promovida à mesa dos adultos.

Sem comentários: