Páginas

sábado, 23 de janeiro de 2021

As tristes semelhanças: 1918?

Esta manhã, li num tweet que uma merceria de bairro fechou, porque o merceeiro adoeceu com COVID. Era onde iam os idosos do bairro, agora todos em risco e, para mais, sem lugar para fazer as suas compras mais necessárias. Ontem ouvi nas notícias que as funerárias pedem o fim dos velórios, na véspera que um crematório em Lisboa tinha 4 dias de atraso. 

Hoje, os números são os mais brutais de sempre: mais de 15.300 infectados, mais de 270 mortos. Muitos novos internados, filas de âmbulancias. 

E lembro-me, cada vez mais, de excertos do meu O Ano da Dançarina, o meu romance de 2017, sobre a pandemia de influenza de 1918. Esse mesmo que, apesar de estar tão perto do centenário do fim da guerra, e de agora se provar tristemente actual, foi muito menos lido do que, na minha (não tão) modesta opinião, merecia. Fica um excerto. 

Mendes de Almeida fechou a maleta num gesto lento de fadiga e dirigiu-se à filha, sentada à secretária (...)
O médico espreitou com consternação o caderno nas mãos de Custódia, com muitas linhas preenchidas com consultas, a maioria para clientes antigos. Não havia nada a fazer.
– Chama o Quim…
– Ó paizinho, o Quim? Já se esqueceu?
O moço de recados fora, de entre os seus conhecidos, a primeira vítima da gripe. Depois dele, fora-se o irmão mais novo e uma das irmãs, depois o vizinho e o dono da mercearia, que fechara, como tinham fechado tantos dos estabelecimentos que tinham resistido à escassez dos bens, mas não à mortandade da espanhola. Tantos se tinham ido, tantos se iam a cada dia, em todas as ruas, que as funerárias, as igrejas, os coveiros, começavam a não dar conta do trabalho. Os sinos tocavam sem cessar a finados, o povo queixava-se do desrespeito dos coveiros, que mal cobriam uma sepultura e já corriam a abrir outras, e via-se com frequência passar um funeral com o morto carregado a «pau e corda».
– Como se fossem uma escrivaninha ou um armário – comentara o pai, desolado, vendo-os passar da janela. – E eu aqui a tentar curar a gente… Ah, não valemos nada, filha, nadinha.
Se não havia dinheiro para a funerária, ou sequer para as cordas, os cadáveres esperavam no passeio pela carreta da morgue, embrulhados em lençóis velhos ou nas sacas de serapilheira onde um dia se tinham guardado batatas, quando ainda as havia, para serem enterrados em covas sem lápide e, por vezes, sem identificação, por não haver tempo para ela, benzidos às pressas pelo padre, triste circunstância à qual Mendes de Almeida não pudera poupar o moço de recados, por não ter chegado a tempo de o mandar enterrar com mais dignidade.

O Ano da Dançarina, cap.25.
Ontem às 10:23 
Conteúdo partilhado com: Público
Público
"Mendes de Almeida fechou a maleta num gesto lento de fadiga e dirigiu-se à filha, sentada à secretária (...)
O médico espreitou com consternação o caderno nas mãos de Custódia, com muitas linhas preenchidas com consultas, a maioria para clientes antigos. Não havia nada a fazer.
– Chama o Quim…
– Ó paizinho, o Quim? Já se esqueceu?
O moço de recados fora, de entre os seus conhecidos, a primeira vítima da gripe. Depois dele, fora-se o irmão mais novo e uma das irmãs, depois o vizinho e o dono da mercearia, que fechara, como tinham fechado tantos dos estabelecimentos que tinham resistido à escassez dos bens, mas não à mortandade da espanhola. Tantos se tinham ido, tantos se iam a cada dia, em todas as ruas, que as funerárias, as igrejas, os coveiros, começavam a não dar conta do trabalho. Os sinos tocavam sem cessar a finados, o povo queixava-se do desrespeito dos coveiros, que mal cobriam uma sepultura e já corriam a abrir outras, e via-se com frequência passar um funeral com o morto carregado a «pau e corda».
– Como se fossem uma escrivaninha ou um armário – comentara o pai, desolado, vendo-os passar da janela. – E eu aqui a tentar curar a gente… Ah, não valemos nada, filha, nadinha.
Se não havia dinheiro para a funerária, ou sequer para as cordas, os cadáveres esperavam no passeio pela carreta da morgue, embrulhados em lençóis velhos ou nas sacas de serapilheira onde um dia se tinham guardado batatas, quando ainda as havia, para serem enterrados em covas sem lápide e, por vezes, sem identificação, por não haver tempo para ela, benzidos às pressas pelo padre, triste circunstância à qual Mendes de Almeida não pudera poupar o moço de recados, por não ter chegado a tempo de o mandar enterrar com mais dignidade."
O Ano da Dançarina, cap.25."Mendes de Almeida fechou a maleta num gesto lento de fadiga e dirigiu-se à filha, sentada à secretária (...)
O médico espreitou com consternação o caderno nas mãos de Custódia, com muitas linhas preenchidas com consultas, a maioria para clientes antigos. Não havia nada a fazer.
– Chama o Quim…
– Ó paizinho, o Quim? Já se esqueceu?
O moço de recados fora, de entre os seus conhecidos, a primeira vítima da gripe. Depois dele, fora-se o irmão mais novo e uma das irmãs, depois o vizinho e o dono da mercearia, que fechara, como tinham fechado tantos dos estabelecimentos que tinham resistido à escassez dos bens, mas não à mortandade da espanhola. Tantos se tinham ido, tantos se iam a cada dia, em todas as ruas, que as funerárias, as igrejas, os coveiros, começavam a não dar conta do trabalho. Os sinos tocavam sem cessar a finados, o povo queixava-se do desrespeito dos coveiros, que mal cobriam uma sepultura e já corriam a abrir outras, e via-se com frequência passar um funeral com o morto carregado a «pau e corda».
– Como se fossem uma escrivaninha ou um armário – comentara o pai, desolado, vendo-os passar da janela. – E eu aqui a tentar curar a gente… Ah, não valemos nada, filha, nadinha.
Se não havia dinheiro para a funerária, ou sequer para as cordas, os cadáveres esperavam no passeio pela carreta da morgue, embrulhados em lençóis velhos ou nas sacas de serapilheira onde um dia se tinham guardado batatas, quando ainda as havia, para serem enterrados em covas sem lápide e, por vezes, sem identificação, por não haver tempo para ela, benzidos às pressas pelo padre, triste circunstância à qual Mendes de Almeida não pudera poupar o moço de recados, por não ter chegado a tempo de o mandar enterrar com mais dignidade."
O Ano da Dançarina, cap.25

Sem comentários: