Faz hoje quinze anos que o mundo mudou.
Há quinze anos e um dia, viviamos na ilusão de uma relativa segurança, no nosso espaço. A guerra, o perigo, eram memórias do século passado, um século terrível, e imagens distantes e exóticas na televisão. E então cairam as torres, mesmo no centro nevrálgico do mundo Ocidental. Foi a escolha certa para destruir as nossas certezas. A escolha ideal para mudar de vez o rosto do mundo Ocidental e trazer o medo para a raíz dos nossos dias. As ondas de choque desse instante em que o segundo avião deitou abaixo a segunda torre e arruinou a esperança de que se tratasse de um acidente ainda se fazem sentir, todos os dias, por todo o lado.
Não perdi nenhuma memória desse dia, eu que, anos antes, tinha estado a fazer de turista no topo das torres e assistido lá a um casamento e visto de lá de cima a maravilha que é Nova Iorque, a irromper por entre o nevoeiro de uma tarde gelada do fim de Dezembro. A onze de Setembro de 2001 - o meu mês, o maravilhoso mês em que nasci - tinha uma menina com dois anos. Estava grávida do meu rapaz, embora ainda não soubesse que era um rapaz. Enquanto almoçava, assisti pela televisão, em espanto, às imagens do primeiro embate, da queda da primeira torre. Depois saí para uma reunião e, ainda mal acabara de sentar-me numa sala de aula, soube da segunda torre. As horas dessa reunião dividiram-se entre os assuntos que era preciso discutir e a vontade quase mórbida, a vontade assustada, a vontade de coração apertado, de saber o que se passava. E depois o Pentágono, e depois o avião que caiu sem ter atingido o seu alvo, porque os passageiros escolheram que morte queriam ter, e depois os corpos em voo sem destino do cimo das torres, e depois todo aquele betão, todo aquele vidro, todo aquele ferro a desmoronar, cheio de vidas, cheio de mortes lá dentro, por baixo dele. E depois dias e dias de muitas coragens diferentes, a mostrar que afinal o coração ainda batia. A custo, mas batia.
E depois disso, o medo, na sua pior forma. O medo que cresce como um mal nos ossos, invísivel e omnipresente, a conformar o corpo e o gesto. O mundo ainda mal curado de um século de guerras mundiais, a Primeira, a Segunda, a Fria, e partido novamente em dois, o medo a insinuar-se nas frestas dos nossos actos e nós na ilusão de que os nossos dias ainda são os mesmos. Passamos a espiar o Mal, a adivinhar o Mal, muito para além desse que pode apanhar-nos numa explosão, num tiro, na lâmina de uma faca, nos pneus de um camião. O nosso largo mundo cheio de estradas e vias de comunicação e rápidos transportes apertou-se e acomodou-se ao medo. O medo passou a estar na nossa vida sob a forma de uma eterna cautela, no movimento, na acção, perante o Estranho, o Estranho aqui ao lado e o lá de longe, os olhos abertos perante a diferença. O medo de não destrinçar o Estranho que nos respeita a nós, seus Estranhos, e o que nos quer mal, porque lhe somos Estranhos, a incapacidade de fazê-lo, e o mundo divide-se entre a coragem de acolher e o temor de fazê-lo, o desejo de repelir, o terror do que possa trazer por baixo das roupas, por baixo da pele, por baixo do próprio desespero. Porque eu não quero ver sofrer o Estranho, mas tão pouco quero ser o Estranho. Tão pouco quero ver o que conquistei converter-se aos poucos, pelo medo ou outras razões muito mais complexas, perder-se na escuridão. Esse mundo que mandou abaixo as torres é de tremenda escuridão, sobretudo para mim, que sou mulher. E eu tenho medo da sua inflexibilidade, mas também tenho medo da minha. Não a quero.
Eis-nos pois perante um mundo de intolerância ou outro mundo de intolerância. E esse é o medo maior, que a diferença entre mim e o Estranho não permita um encontro dos dois, porque nenhum desses mundos emparedades é o mundo que quero para os meus filhos, esses que eram promessa e projecto no dia em que o mundo mudou. Quero uma filha livre. Quero um filho vivo. Quero filhos sem medo num mundo sem medo. Imagine all the people.
Ou talvez seja apenas eu. Talvez seja apenas eu e o medo apenas meu.
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