Parece que este ano não consigo manter-me fiel a um texto - começá-lo, acabá-lo, revê-lo e dá-lo por concluído . Tinha esperança nestas pequenas férias, mas parece que ando ao sabor de um vento que não entendo, de um trabalho para outro.
Hoje acordei com vontade de mexer no meu mais incompleto e provavelmente mais necessitado de muito trabalho, aquele que me vai ser sempre duro. É, por ora, O Coração Quente da Terra,. Fica um bocadinho.
Pareceu-lhe
que conhecia os dois homens que acabavam de entrar, mas o seu olhar não se
deteve neles. A água da chuva deslizava nas
portas de entrada. Abriram-se outra vez, para deixar entrar uma mulher idosa de
gola de pelo, acompanhada de um homem ainda mais velho apoiado num andarilho, um
cadáver por antecipação, a pele muito pálida e seca pendendo qui, esticada ali
sobre ossos agudos. Seriam realmente assim tão brancos, os mortos? Rodrigo
estaria assim, exangue e murcho? Na televisão, os mortos tinham uma tonalidade
acinzentada, como o dia lá fora… o dia estaria morto? Arrepiou-se, meio ciente
apenas do movimento na sua direção. A porta fechou‑se e o casal desapareceu
devagar num corredor à esquerda. Ficou a ver os rios estreitos na vidraça.
-
Está a chover. – soprou – Está sempre a chover.
-
Mena? Estás bem?
Reconheceu
vagamente a voz do irmão mais velho, identificou pelo cheiro o abraço de urso
em que a envolveu. Era tão alto, o seu irmão. Às vezes maior do que o mundo.
Noutras... O que fazia ali nessa manhã de chuva? Ouviu um soluço, um gemido.
-
Estás a chorar, Filipe? – A voz embrulhou-se-lhe na garganta e percebeu, de
repente, que o soluço tinha nascido dentro dela. Estremeceu quando o seu
cérebro alcançou de repente o que o corpo já compreendera. As pernas cederam e ficou
suspensa do abraço do irmão.
-
Mena?
Filipe
obrigou-a a sentar-se. Filomena levou os dedos ao rosto, à espera de senti-lo
molhado. Não, lá fora é que chovia. Ela estava seca. Os braços da mãe voltaram
a rodeá-la, uma grilheta sufocante que não se atreveu a sacudir. Fechou os
olhos e desejou a escuridão da inconsciência, mas não veio. As coisas nunca
vinham quando ela queria, apanhavam-na sempre de surpresa. Como Rodrigo a
apanhara de surpresa quando ela se preparava para partir para uma vida noutro
país e a segurara ali, refém da paixão e de um futuro juntos. E como Miguel a
apanhara de surpresa, a crescer dentro dela quando se julgava prevenida contra
outro desses amores eternos. Como o toque do telemóvel, no momento em que
fechava a porta de casa dos pais, para deixar o Miguel antes de ir trabalhar, a
avisar que Rodrigo caíra da mota na autoestrada e fora levado para o Santa Maria.
Como
ali, na boca do médico. Morto.
E
agora? Que faria agora com o seu amor indesejado? Que faria com o filho sem
pai? Sentiu a ferida da luz através das pálpebras. De nada lhe serviu cerrá-las
com mais força, a luminosidade era uma lança dolorosa. De onde vinha? Abriu os
olhos. Havia uma janela mesmo à sua frente, do outro lado do corredor, de onde
se viam as nuvens como rolos de chumbo no céu. Notou, com perplexidade, que a
chuva batia nela com violência e a luz era, afinal, tão pouca. Estava a chover?
Há quanto tempo? Há anos. Há anos que chovia na sua vida.
Desejem-me sorte para continuar isto...
1 comentário:
Força!
Também ando numa fase saltitante...
Feliz 2016!
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