Sempre gostei de andar de comboio. Há alguma coisa de prazeiroso e encantador em esperar numa estação quase deserta, subir para o comboio, procurar o lugar, descobrir com gosto que é à janela e seguir, um pouco sacudida, com a grande lagarta a devorar quilómetros e a paisagem a correr ao lado, imparável. Melhor ainda se a carruagem for confortável e, como hoje, tiver mesinha e internet. A última não é, claro, essencial.
Foram quase duas horas... não, foram apenas quase duas horinhas de viagem, podiam ter sido mais com a revisão de texto à minha frente, e consegui completar um capítulo - duas ou três cenas distintas que me deram muito trabalho e muito prazer. Perdoem a foto feia, mas... bom, ficam dois mini-mini-excertos deste texto ainda sem destino. São livres de detestar.
1. A protagonista, a prima e a futura cunhada , um pouco de conversa antes de falarem sobre anarquia e anarquistas:
-
Havia um quarteto, mas nenhum tinha olhos azuis, não. E desta vez os músicos
nem eram maus, ao menos tinham um repertório moderno e estavam razoavelmente
afinados. O problema foi que a D.Valentina não nos largou a noite toda. – Fungou,
irritada – Perguntas e mais perguntas sobre o casamento, quando seria e onde, e
quem vai fazer o meu vestido. E sobre as propriedades do duque, sobre os seus
gostos...
-
Não perguntou se tinha primos em boa situação?
-
Claro que sim, primos, sobrinhos, amigos... – Sofia riu-se baixinho.
-
Imaginas como será a vida da pobre Dolores? As vergonhas que passa? – Vina
inclinou‑se para a frente e as amigas, instintivamente, imitaram-na – Diz-se
que no Verão passado a mãe perseguiu o pobre Vasco Bentes, lembras-te dele?
Queria à força fazer o casamento! Disse-me a Dolores, nem imaginas que aflita
andava, eles nem se podem ver.
-
Coitada. – resmungou Sofia, pensando em si própria.
-
Há quem diga que foi por isso que o Vasco Bentes debandou para o Brasil.
-
Ora essa!
-
Não te admires, Amélia. Parece que disse a quem quisesse ouvi-lo – continuou
Ludovina – que antes queria o degredo em África do que uma sogra daquelas.
Preferia enfrentar as tempestades no mar, as febres e um selvagem nu com uma
lança do que a ‘matraca da maldita espanhola’. Foi assim que lhe chamou. E,
convenhamos, a D.Valentina fala por dez!
Amélia
riu-se. Habitualmente, aquelas maledicências de salinha não lhe interessavam
mesmo nada, mas a Ludovina era muito engraçada a contá-las. Rolava expressivamente
os olhos, soprava e bufava e impunha à voz um tom de conspiração.
-
Vininha, que exagero. Pobre senhora.
Ela
encolheu os ombros.
-
Pobre senhora? Pobre Dolores! A D. Valentina tortura-a com a vontade de a
casar! – protestou - É ver como a pobre
se queixa.
-
A Dolores não se queixa. – contrapôs Sofia, sentindo uma estranha empatia com a
rapariga.
-
Queixa sim. Não a ti, que a assustas.
-
Quem, eu? – Endireitou os ombros, indignada.
2. o irmão da protagonista e o amigo, metidos em sarilhos
Percorreram
em silêncio pensativo as ruas em direcção a Campo de Ourique. O velho cabriolé
sacudiu e saltitou na estrada empredada, gemendo e protestando, e deteve-se
finalmente, a pedido de Teodósio, junto ao Santo Condestável. Caminharam
rapidamente e tocaram à porta num edifício de três andares forrado a azulejo
azul, na rua Ferreira Borges.
-
Até que enfim. – rabujou o homem que lhes abriu a porta – Entrem lá.
Subiram
as escadas esconsas até às águas furtadas, a madeira gemendo a cada passada
como se reclamasse do peso combinado dos três homens. O vago cheiro a tinta que
se fazia sentir à entrada foi-se tornando mais intenso a cada lance de escadas
e na divisão pequena e atravancada no cimo do edifício, onde uma prensa manual
terminara há pouco de imprimir os panfletos empilhados sobre uma mesa velha, o
ar era quase irrespirável. Um homem de patilhas fartas, em mangas de camisa,
fumava um cigarro junto à janela aberta, sob o esconso, e dois outros estudavam
o produto do trabalho dessa manhã. Todos vestiam as roupas simples de homens de
trabalho, estivadores que eram os dois últimos, e desempregado há muitos meses
o das patilhas, vivendo de biscates e subterfúgios. Deitou-lhe um olhar
sobranceiro e puxou uma longa baforada. Tinha os dedos negros de tinta.
-
Os meninos chegam quando o trabalho
está feito. – rosnou.
Sem comentários:
Enviar um comentário