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quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Se andasse de comboio todos os dias...

Sempre gostei de andar de comboio. Há alguma coisa de prazeiroso e encantador em esperar numa estação quase deserta, subir para o comboio, procurar o lugar, descobrir com gosto que é à janela e seguir, um pouco sacudida, com a grande lagarta a devorar quilómetros e a paisagem a correr ao lado, imparável. Melhor ainda se a carruagem for confortável e, como hoje, tiver mesinha e internet. A última não é, claro, essencial.

Foram quase duas horas... não, foram apenas quase duas horinhas de viagem, podiam ter sido mais com a revisão de texto à minha frente, e consegui completar um capítulo  - duas ou três cenas distintas que me deram muito trabalho e muito prazer. Perdoem a foto feia, mas... bom, ficam dois mini-mini-excertos deste texto ainda sem destino. São livres de detestar. 



1. A protagonista, a prima e a futura cunhada , um pouco de conversa antes de falarem sobre anarquia e anarquistas:

- Havia um quarteto, mas nenhum tinha olhos azuis, não. E desta vez os músicos nem eram maus, ao menos tinham um repertório moderno e estavam razoavelmente afinados. O problema foi que a D.Valentina não nos largou a noite toda. – Fungou, irritada – Perguntas e mais perguntas sobre o casamento, quando seria e onde, e quem vai fazer o meu vestido. E sobre as propriedades do duque, sobre os seus gostos...
- Não perguntou se tinha primos em boa situação?
- Claro que sim, primos, sobrinhos, amigos... – Sofia riu-se baixinho.
- Imaginas como será a vida da pobre Dolores? As vergonhas que passa? – Vina inclinou‑se para a frente e as amigas, instintivamente, imitaram-na – Diz-se que no Verão passado a mãe perseguiu o pobre Vasco Bentes, lembras-te dele? Queria à força fazer o casamento! Disse-me a Dolores, nem imaginas que aflita andava, eles nem se podem ver.
- Coitada. – resmungou Sofia, pensando em si própria.
- Há quem diga que foi por isso que o Vasco Bentes debandou para o Brasil.
- Ora essa!
- Não te admires, Amélia. Parece que disse a quem quisesse ouvi-lo – continuou Ludovina – que antes queria o degredo em África do que uma sogra daquelas. Preferia enfrentar as tempestades no mar, as febres e um selvagem nu com uma lança do que a ‘matraca da maldita espanhola’. Foi assim que lhe chamou. E, convenhamos, a D.Valentina fala por dez!
Amélia riu-se. Habitualmente, aquelas maledicências de salinha não lhe interessavam mesmo nada, mas a Ludovina era muito engraçada a contá-las. Rolava expressivamente os olhos, soprava e bufava e impunha à voz um tom de conspiração.
- Vininha, que exagero. Pobre senhora.
Ela encolheu os ombros.
- Pobre senhora? Pobre Dolores! A D. Valentina tortura-a com a vontade de a casar! – protestou -  É ver como a pobre se queixa.
- A Dolores não se queixa. – contrapôs Sofia, sentindo uma estranha empatia com a rapariga.
- Queixa sim. Não a ti, que a assustas.

- Quem, eu? – Endireitou os ombros, indignada.


2. o irmão da protagonista e o amigo, metidos em sarilhos

Percorreram em silêncio pensativo as ruas em direcção a Campo de Ourique. O velho cabriolé sacudiu e saltitou na estrada empredada, gemendo e protestando, e deteve-se finalmente, a pedido de Teodósio, junto ao Santo Condestável. Caminharam rapidamente e tocaram à porta num edifício de três andares forrado a azulejo azul, na rua Ferreira Borges.
- Até que enfim. – rabujou o homem que lhes abriu a porta – Entrem lá.
Subiram as escadas esconsas até às águas furtadas, a madeira gemendo a cada passada como se reclamasse do peso combinado dos três homens. O vago cheiro a tinta que se fazia sentir à entrada foi-se tornando mais intenso a cada lance de escadas e na divisão pequena e atravancada no cimo do edifício, onde uma prensa manual terminara há pouco de imprimir os panfletos empilhados sobre uma mesa velha, o ar era quase irrespirável. Um homem de patilhas fartas, em mangas de camisa, fumava um cigarro junto à janela aberta, sob o esconso, e dois outros estudavam o produto do trabalho dessa manhã. Todos vestiam as roupas simples de homens de trabalho, estivadores que eram os dois últimos, e desempregado há muitos meses o das patilhas, vivendo de biscates e subterfúgios. Deitou-lhe um olhar sobranceiro e puxou uma longa baforada. Tinha os dedos negros de tinta.

- Os meninos chegam quando o trabalho está feito. – rosnou.




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