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sexta-feira, 4 de setembro de 2015

O escritor sem nada para dizer

Há dias em que acorda convicto de que não tem mais nada para dizer. Nesses dias, cada vez menos raros, não sabe porque um dia começou a escrever ou se deve voltar a fazê-lo. Sabe que é passageiro, como uma nuvem ou uma dor de cabeça, se nada fizer, a tempestade desfaz-se e amanhã talvez volte à sua pele. Estranha pele, essa que o tira de si próprio, mas é nessa que se sente bem. Usa-a sempre, cheia de outros. Frente a frente com um espelho vazio não saberia o que fazer. Por isso, nesses dias em que é só um não se vê ao espelho, vira o rosto para não se encontrar em nenhum dos espelhos e vidros da casa.

Nesses dias, o escritor nada diz. Não se senta à sua secretária, não fica a ouvir os pássaros nem a chuva a cantar nas vidraças das janelas. Despe-se de todo o romantismo, não o de falar de amor, mas o de achar que as palavras podem dizer coisas importantes que tem dentro dele, o de achar que tem coisas importantes dentro dele, ideias, conceitos, histórias, sentimentos, até. Despe-se de tudo isso e sai à rua. 

Não vai ao café, não cumprimenta os tipos do costume, "Bom dia, senhor escritor" não lhe assenta nesse dia. Está nú e não se sente bem com o cumprimento. Vai ao centro comercial, onde evita cuidadosamente as livrarias que lhe lembram das palavras que os outros têm para dizer. As que são melhores que as dele, principlamente, e lhe causam um ligeiro desprezo por si próprio. Compra uma camisa. Vai ao cinema, sem pipocas, não porque estas não lhe agradem mas por achar, apesar de tudo, que um escritor a sério não as come no cinema. Ele quer ser sério, medido pelo valor das suas palavras e não pelo número de livros que vende. Permitem viver, mas ele quer mais. Nos outros dias, nesses não.

Vê um filme inconsequente, claro. Alguma coisa com tiros. Se nada tem para dizer, também não quer ter nada em que pensar. Nem quer reconhecer que não tem nada em que pensar. O chiar de travões e as explosões violentas calam o silêncio. Come uma sandes, por vezes um hamburguer com uma cola e deixa-se ir na impressão de que faz parte da maralha. Sabe que faz parte da maralha, de que serve a ilusão? Se não dessa, doutra qualquer. Pode ser da que pensa que vale mais do vale. Formigas, todos. Volta já o sol se pôs e a noite está pronta para o tomar de assalto, com um whisky no sofá e ainda sem nada para dizer. 

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