E porquê irritação? É assim tão mau? Não, é assim tão bom. Tão bom que gera a repulsa que deve gerar. Enquanto objecto artístico ou de entretenimento o filme está belíssimamente estruturado, é longo mas nunca cansa, encerra vários elementos conducentes a uma importantíssima reflexão sobre os valores da sociedade e das relações actuais e, a acrescer, faz o que deve fazer um filme sobre um desaparecimento que pode ou não ser um homícidio: primeiro engana-te, depois deixa-te na dúvida, afinal o que aconteceu, engana-te outra vez, mas desta vez já desconfiada, e depois... depois a dúvida cessa (admirem aqui o esforço que faço para evitar SPOILERs, ainda que muitos já devam ter visto o filme ou lido o livro) e as personagens revelam-se em todo o seu obscuro esplendor.
Aí a porca torce o rabo, ou torce-me o estômago, não sei bem, e não destorce mais, porque até ao fim tudo é o que se esperava e nada é o que se esperava, entrei numa espécie de espiral de incredulidade relativamente à refinadíssima e premeditadíssima brutalidade dos actos e à forma como esta passa impune. Não foi possível para mim deixar de admirar a inteligência do filme e da personagem e ao mesmo tempo sentir-me repugnada. Não há personagens limpas, mas este é um jogo de versos e reversos, de aparências e verdades através da dupla lente das câmaras, a do filme e a dos media. A manipulação as nossas estruturas de comunicação actuais e dos mecanismos policiais e legais, que deviam servir para nossa proteção, não é nada inverosímil, se tivermos em conta os circos que se montam em torno de tudo e de nada - e as verdades e mentiras que através deles se contam.
Não há redenção nem descanso na conclusão do filme, e embora desejasse... qualquer coisa e me tivesse dado uma enorme satisfação emocional que o crime tivesse castigo, também me desapontaria. Não estaria à altura do que até aí me levantou os cabelos na nuca de irritação... e ainda levanta.
Uma nota para os autores principais: eu não sou dos detratores de Ben Affleck, gosto dele e sempre gostei, mas está aqui realmente bem, e melhor ainda está Rosameundo Pike, fantástica na fragilidade e na acidulíssima versão sociopata (ou seja ela o que for).