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domingo, 18 de junho de 2017

Florença - o primeiro olhar

(a partir do que fui escrevendo no meu miserável "caderno florentino", com alguma revisão)

Viagem

Partida às 8.45, do Aeroporto de Lisboa. O embarque é rápido e o avião parte com escassos 15 minutos de atraso. Não gosto particularmente de voar, sinto-me presa dentro de um tubo de metal, por isso, enquanto os motores ganham força, vem-me à cabeça o verso de Alanis Morissette, "Mr.Play it Safe was afraid to fly / He packed his suitcase and kissed his kids good-bye / He waited his whole damn life to take that flight / And as the plane crashed down he thought / "Well, isn't this nice." Sinto-me parva e afasto com esforço deliberado as palavras. Não tenho verdadeiro medo, mas não voo o suficiente para evitar o friozinho no estômago. Ou a excitação. Florença é o cumprimento de um sonho antigo. Eu tiro o kindle, no tablet o Pedro põe um filme de acção. à chegada, ainda teremos mais um autocarro e um comboio para apanhar, mas que importa? Estamos a caminho.

Chegada

Chegamos por volta das três da tarde. Faz calor e a rua é movimentada, mas escolhemos bem: é muito perto da estação e do Mercado e, se for verdade o que vimos nos mapas da cidade, perto de tudo o resto. Quase não damos pela entrada, apesar de ser um grande portão, e, lá dentro, temos de tomar o elevador para o 5º andar. Nunca me teria ocorrido que um hotel podia ocupar apenas os pisos superiores de um edifício. Algures no mesmo prédio há um albergue de uma estrela, pelo que temo um pouco que as imagens online nos tenham iludido (já aconteceu), mas o Hotel Cantoria tem uma entrada muito branca e azul, e tudo é simples, novo e limpíssimo. O italiano que nos atende é muito simpático - e bonito, com uns belos olhos azuis! 


Mercado Central

Troco de roupa para algo mais adequado ao calor que faz lá fora. É bastante tarde e o horário do voo assegurou apenas uma sandes, pelo que temos fome. O Mercato Centrale é ali mesmo ao lado, um edifício grande a meio de uma rua com bancas sucessivas de malas, sacos, casacos de cabedal. Pergunto-me quais pertencerão às lojas escondidas mesmo por trás. Cheira intensamente a pele, o que em nada me incomoda. O mercado tem um espírito muito semelhante ao da Ribeira, junto ao Cais do Sodré, mas com as vendas no rés do chão e as mesas e bancas no primeiro andar. Escolhemos qualquer coisa logo na terceira banca, uma espécie de canudos de fritos, que insisto para serem, ao menso, uma mistura entre carnes e legumes. Não está muito cheio e sentamos sem problema. Enquanto como os legumes sem grande sabor e bebo a óptima cerveja, observo o tecto muito alto, do qual estão suspensos enormes candeeiros de vime de, pelo menos, três formatos dferentes. As mesas são em madeira, de alturas diferentes. 

Quase ao nosso lado, uma rapariga fala incessantemente sobre si própria, em inglês, com um rapaz que só consegue (ou quer) debitar uma palavra aqui e ali. Imagino uma conquista insipiente, um amor de férias, e lembro-me de como eram incertos, enervantes e excitantes os rituais da conquista. Tenho e não tenho saudades dessa sensação de ser tudo uma enorme pergunta. Ao fim de um bocado, já me pergunto se o rapaz estará tão aborrecido como eu, ou grato por não lhe ser exigido grande discurso. Talvez ela esteja cheia de sorte e ele seja tímido.  

Basílica de S.Lorenzo


Seguindo a rua por entre as bancas, desembocamos na praça de S.Lorenzo, onde a Basílica de tijolo castanho impera, enorme, com a sua cúpula de telha vermelha. Os edifícios de três ou quatros andares em redor da praça são amarelos ou ocre, com sacadas regulares e lojinhas no rés-do-chão.   Não consigo ainda "respirar" a cidade, como espero conseguir antes de a deixar, e, apesar de já lhe adivinhar a beleza, ainda não me seduziu

Tiramos uma maldita selfie antes de entrar na Basílica e compramos os bilhetes, 6 euros cada. Não investigei sobre isso, mas desconfio que em todos os monumentos nos será cobrada uma entrada respeitável, afinal manter toda esta magnificência anciã terá o seu preço. Os claustros são agradáveis, com uma laranjeira no centro do espaço ajardinado e aquela quietude que se insinua sempre em mim e me traz uma vontade enorme de me deixar ficar tempos infindos sentada nos muretes de pedra. Não ficamos, porém, há uma basílica enorme a ver. Tectos trabalhados, uma abóboda pintada com cores vivas sobre o altar, pilares à esquerda e à direita, quadros de Conti, Lipi e outros mestres importantes. Bonita, mas não me deixou de boca aberta, talvez por ter enchido o peito com estas igrejas em Roma. Visitamos o museu, onde estão expostos os cálices, ostentórios e custódias cujo valor não consigo imaginar, e muitíssimos relicários. Num, posso ver os ossos inteiros, da perna ou do braço dos homens santos, noutros são pequenas lascas, fios de cabelos e outros testemunhos que me arrepiam. Perturba-me sempre o culto dos mortos levado a este extremo, a fé transformada em luxuosa morbidez.

Nas catacumbas, espreitamos a tumba de Donatello, parcialmente responsável pelo desenho da Basílica, e percorremos uma fascinante exposição de arte contemporânea, com interpretações de temática religiosa - nuns mais, noutros menos, nuns mais irreverente, noutros nem por isso. Calculando que a minha filha estudante de arte gostaria de vê-la, peço ao Pedro que tire fotos e lhas envie. Eu só quero encher os olhos. 

O primeiro Duomo

As ruas até ao Duomo são movimentadas e o trânsito, se lhe posso chamar isso, é confuso. As pessoas, muitas, andam pelo meio da rua como nos passeios, os automóveis são quase todos táxis eléctricos, muito silenciosos, e há bicicletas e carruagens. De quando em quando ouve-se uma apitadela, para que algum transeunte se afaste do caminho de um táxi ou de uma bibicleta, mas o espírito é descontraído e não vejo um único sinal de irritação. Há lojas modernas, mas a sensação é de antiguidade. 

Duomo (Santa Maria del Fiori)
Fico esmagada pelo Duomo. Não há outra forma de dizê-lo. O Pedro não contém o espanto, exclama e tira fotos, mas eu não sou capaz de tanto. Sentamos-nos numa esplanada às sombra, a praça não oferece muita, e pedimos cerveja, e eu só quero contemplar o edifício, bem caladinha, trazendo cá para dentro esse absurdo gigantesco, verde e branco, encimado por duas cúpulas de telha vermelha, mãe e filha. Ao lado, o Batitstério é um reflexo minimal, das paredes do edifício principal. Os meus olhos não são capaz de abarcar tudo. Há holofotes nos edifícios que cercam a praça, dando a ideia de que à noite, o monumento deve revestir-se de nova magnificência. Planeamos a visita para a manhã seguinte, primeiro destino. O Pedro começa a aborrecer-se com demora a trazer as cervejas. Eu não. Estou cansada, a praça é lindíssima e começa a soprar uma brisa agradável. 

De regresso ao hotel para um duche, ainda damos mais uma volta grande, com passagem
Santa Maria Novella (praça)
na praça da República, com o seu Arco do Triunfo (tantas cidades o têm!) e por Santa Maria Novella (a catedral fica para mais tarde), e o "espírito" da cidade começa por fim a mostrar-se, se calhar diferente para cada um dos que a visitarem. É disto que eu gosto, de deambular sem pressas, sentar-me nas esplanadas ou onde seja, a olhar para as fachadas, para as pessoas, para o movimento, imaginar o tempo e a vida a rolar sobre as construções. Oxalá desta vez não haja correrias para "ver tudo", "ver tudo", "ver tudo".

(nota: já em casa, fiz uma pesquisa curta e descobri que o Duomo, ou seja, a Catedral de Santa Maria del Fiori, começou a ser construido em 1296, e só terminou em 1436, e reune característica da Arquitetura gótica, do Renascimento, Neogótico e  Gótica Italiana, bem como o trabalho de arquitetos como Filippo Brunelleschi (o principal, segundo creio), Giotto di Bondone, Arnolfo di Cambio e Francesco Talenti)


O fim do dia

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foto retirada da net
O Pedro traz a recomendação, a Trattoria dall Oste, para o primeiro jantar e a ideia de que será difícil de encontrar. Não é, e ainda bem, porque o meu corpo começa a ressentir-se do começo às 6 da manhã, depois de vários dias de trabalho intenso, da viagem e deste primeiro passeio. Parece que em Florença o melhor para comer são as bistecas... enormes bifes, altos, mal passados! Recuso-os terminantemente e opto por um pici (esparguete mais grosso) muito simples, com tomate e manjericão, que está delicioso. O Pedro delira com o bife  e até eu, provando um pedacinho da ponta, mais bem-passado, tenho de concordar que é bom. Bebemos Chianti, e claro que me lembro de Hannibal, n'O Silêncio dos Inocentes. Claro. Parvoíces. O serviço é simpático, como todos até aqui. Noto que estamos sentados, numa mesa redonda, dentro de uma pipa cortada ao meio e que atrás de nós há placas com nomes, e, a uma pergunta do Pedro, a empregada explica que são todos vinhos da região ou da Sicilia. Ficamos curiosos com uma sobremesa, um biscoito que se vai molhando num licor antes de cada dentada, que arranca umas caretas terríveis de nojo a um oriental - há muitos turistas chineses, japoneses ou coreanos, não saberia distinguir - mas não a pedimos. 

Em vez disso, terminamos a noite com mais um passeio, um gelado dividido e um café com água frizzante (com gás) numa esplanada. Fico muito contente por, por fim, poder deitar-me para uma boa noite de sono.  

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