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terça-feira, 17 de junho de 2014

Se este caracol se mexesse!

Vai tão devagar, tão devagar, que parece que arrasta às costas uma casa de duas toneladas, mas lá vai acontecendo. Mais um excerto de um texto ainda sem nome, que há de dar em romance. Se bom ou mau... isso está para se ver. 

Perdoem-lhe as falhas, que não há ainda revisão nenhuma. mas apeteceu-me mesmo partilhar, e, ora essa, o blogue é meu.


Brígida não dormia. Todas as noites era o mesmo. Deitava-se sozinha e era tomada de surpresa pelo frio dos lençóis, pelo vazio. Parte dela encolhia-se, a outra queria estender as pernas e ocupar a cama inteira.  Assustada consigo própria, punha-se a imaginar o que faria Alberto a essa hora, se estaria bem e, estando bem, se estaria só, consumia-se um pouco com um ciúme deslocado, zangava-se consigo própria, de que servia aquilo se nem sabia se estava vivo, se viria, quando, como. Pensava na sua vida, na casa alheia que ocupava, na dispensa vazia, no dinheiro que escasseava, tinha que ir aos Correios ver se o vale dos pais chegara, pensava no que era preciso fazer, há quase dois meses que estava em Lisboa e ainda se sentia desorientada, estrangeira, como se estivesse ali numas férias forçadas e esperasse regressar a qualquer momento. Se calhar não voltava, era esperança vã. De qualquer maneira tinha que arranjar emprego ou render-se a uma vida com os pais no Alentejo, e era o mesmo se o marido viesse e não touxesse as pedras prometidas. Alberto devia ter chegado há um mês mas não sabia quase nada dele, estava cansada de estar só, tão cansada que era quase indiferente à solidão, estava quase acostumada a ela.
Alguém se acostuma à solidão?
A sua pegara-se-lhe à alma quando pela primeira vez entendera que, sendo seu, Alberto nunca lhe pertencera inteiramente, muito antes de ele lhe faltar também em corpo, quando estar só era ainda estar acompanhada e disfarçar o desalento. Agora era era diferente, um pavor de avançar e ver tombar de vez o edifício mal alicerçado da sua vida.

Tens que avançar. E começar por trabalhar. Talvez pudesse ser professora, tinha qualificações, não, professora não, escasseava-lhe a paciência às vezes até para os seus, mas secretária sim, sabia línguas, escrevia bem, dactilografava bem, quantas vezes o fizera para Alberto. Alberto outra vez a tomar forma no vazio, a saudade. Dele nem uma palavra, e as notícias que vinham de Angola eram escassas, nas páginas dos jornais que falavam de África não falavam de mortos, não diziam nada, era a vizinha que tinha um marido no exército que lhe contava que aquilo para lá era uma chacina. Que podia ela responder, que sabia, não por lhe ser contado em sussurros ou por vê-lo a preto e branco em letras alinhadinhas, segurinhas, mas porque carregava na memória relatos em viva voz, ainda com cheio a sangue, a furo de espingarda, a lâmina quente, a queimado? Porque ainda trazia consigo o rosto enrugado de Jacinta, sentada numa cadeira em casa de Valerie por falta de mais família, toda morta ou perdida pelos matos, fugida para alguma parte, sabia lá, não via nada, não sabia nada, Jacinta figura de proa em muitos dos seus pesadelos, os buracos dos olhos cobertos pelo lenço com que disfarçava mal as cicatrizes, não podia esconder as marcas mais fundas por baixo das arcadas esvaziadas, estavam no sobressalto a cada voz, a cada passo, no braço que disparava e apalpava o ar, num tremor constante, as perguntas sempre, sempre, “Está aí alguém? Quem está?” Não estava quase ninguém. E estava ainda gente a mais.

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