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sexta-feira, 20 de novembro de 2015

O último Bond, Daniel Bond, e os espectros

A série 007 acumulou, nos seus muitos anos, uns quantos Bonds.

Não me lembro de todos - há um ou dois nomes que me passam ao lado e outros que nunca me convenceram enquanto agentes secretos. Há os icónicos, claro, Sean Connery, um charme, e Roger Moore, um canastrão que encheu muito bem os sapatinhos da figura de Bond. Pierce Brosnan não se saiu mal, consegue aquele ar de sedução de bolso e de misoginia assumida que assenta bem à série. E não lhe saía um cabelo do lugar. Ficavam bem numa série cheia de improváveis, impossíveis, armas estranhas e estranhas geringonças, vilões do piorio e mulheres seminuas, muita acção, etc, deliciosos clichés que era (é) preciso aceitar antes de ver o filme, ou não vale a pena vê-lo. Bond surgia neles como uma figura imediata - sem passado nem futuro, sem raízes, sem sentimentos, sem profundidade e, claro, sem escrúpulos ou fantasmas no que diz respeito à licença para matar".

Os últimos filmes de Bond, porém, com Sam Mendes ao leme e Daniel Craig à proa, têm navegado águas um pouco diferentes. Costumo chamar-lhes os Bond da geração Jason Bourne: são mais duros, mais sujos, mais assombrados, e a diferença essencial está na figura do próprio 007, que é mais duro, mais sujo, mais assombrado. Este Bond não chega ao fim do filme com a camisa branca engomada, sem uma nódoa de sangue, sem um arranhão, sem uma mazela na alma. Não é uma figura inteiramente solitária e sem raízes: conhecemos-lhe, finalmente, uma ascendência e uma infância, os fantasmas de um passado difícil, conhecemos-lhe uma casa (e eu que sempre o imaginei de hotel em hotel!!) e ligações fortes com, por exemplo, Vesper Lynd e M. de que senti muita falta neste filme, apesar de Ralph Fiennes. Conhecemos-lhe a culpa - muita - e as falhas - o alcoolismo, a idade... Reduz-se ligeiramente a misoginia - um dos aspectos mais irritantes desta série de filmes - porque, ainda que as mulheres continuem a servir, de certa forma, como "enche olho" e como objecto descartável, encontramo-las um pouco mais fortes e temos M. numa posição de relevo. Há, também, menos Bond girls por filme, creio... Tanbém não as temos tanto como vilãs de perna de fora, pois não? 

Spectre (2015) Poster
O meu favorito é, nesse aspecto e em tantos outros, Skyfall (2012) com Casino Royale (2006) num segundo lugar relativamente próximo. Spectre tem um ar de fim de série e, sabendo que 007 não acaba, sei no entanto que estamos provavelmente no fim do ciclo Daniel Craig, o meu Bond favorito. Reunem-se as linhas do passado e todos os fantasmas deste novo Bond, que trava uma batalha pessoal contra uma figura da sua juventude, ao mesmo tempo que se debate com uma ameaça muito moderna - temos a actualíssima questão orwelliana da vigilância global - ao serviço de quem, na verdade? Em favor de quem (nosso, da nossa segurança ou de entidades que acabam por ter na mão as nossas vidas?) e a contra quem (contra o terrorismo ou, a médio prazo, contra nós mesmos?). Bond surge como uma figura de outros tempos, todo o programa 00 prestes a ser considerado obsoleto, um resquício de outros tempos mais hands on, o individuo contra o sistema... um bocado como se discutissemos "o livro ou o ebook?". Os argumentos Bond não são de tremenda complexidade, por isso surgem, infelizmente, poucas nuances na defesa assumida dos primeiros contra os segundos (que faz sentido, claro, o contrário seria um tiro no pé da própria série). Nem é de grande complexidade o vilão ou as suas motivações particulares, mas tão pouco é o que se espera de um filme de Bond. 

Resultado de imagem para madeleine swann 007A organização fantasma e seu lider (Specter) não são surpreendentes, nem as ligações às instituições governamentais. O vilão não me encantou enquanto vilão, mas Ralph Fiennes está muito bem, a actriz Léa Seydoux tem a presença e a força necessárias para não ser só outra Bond girl e há algumas cenas giras de acção. O que continua a ser  interessante é o próprio Bond, e não tem apenas a ver com a forma impecável como um homem de 47 anos enche o fundilho das calças e caminha como um tigre na caça - falta-me o português para o termo inglês prowl. Tem a ver com a ambiguidade que Mendes e Craig emprestam à personagem... e aqui, se continuar a escrever, vou repetir-me. Ah, acrescento que há vodka Martini, creio que shaken, not stirred, e uma referência ao Rato Mickey. 

Em conclusão: este filme não será o melhor da série, mas vi-o com agrado. Não envergonha de modo algum a "dinastia" Craig que, temo, tenha chegado realmente ao fim. Não só li por aí declarações do actor a dizer que preferia uma coisa qualquer terrível (do  tipo contrair lepra) a voltar a fazer de Bond, como o fim me soa mesmo, mesmo a fim de ciclo, uma espécie de fim feliz à moda do 007... mas comm a mulher vestida e sem oh, James.

nota: já faz uma semana que vi o filme... que só faça agora uma opinião é testemunho da minha falta de tempo... e, com ele, de imaginação para estas coisas.

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