O escritor dá uma olhadela inadvertida ao espelho da
entrada, vê o seu simulacro familiar e compõe por instinto o cabelo. Fica aborrecido.
Não lhe importa o aspecto que tem, nem se recorda de quem determinou que aquele
era um bom lugar para pendurar um espelho ou desde quando lá está. Desde
sempre? Repete que o vai tirar dali, sabendo que se esquecerá disso assim que fechar
a porta. Lembrar-se-à quando voltar a abri-la e se enfrentar, para depois
voltar a esquecer-se. É um jogo com a
memória das coisas relevantes, cujo desfecho lhe é indiferente. Não se importa com o seu reflexo.
Continua ali, todavia, olhando-se. Agora tem as mãos nos bolsos, não alisa os vincos do rosto ou da Tshirt. Pergunta-se se deveria atribuir significados ao gesto de observar-se. Não descobre nenhum, embora saiba que a maioria os inventa e se reinventa dentro do espelho. Poucos se guardam num espelho como são na realidade. A ele não faz diferença e, no entanto, talvez esse espelho tenha uma função, mostrar-lhe que ainda existe ou lembrar-lhe a passagem do tempo. Ri-se de si próprio. É um cliché, afinal, como outro qualquer. Como ter um espelho na entrada. Lembra-se de que há anos escreveu um conto sobre uma mulher
apaixonada por um espelho. A mulher ama a moldura antiga de talha dourada, a
superfície lisa e brilhante, a eternidade que vislumbra dentro dela, na
possibilidade do reflexo repetido, o tempo todo contido dentro dele. A mulher
vive no tormento dessa paixão e do ciúme pela figura dentro do espelho, que,
sabe bem, não é ela. Parece-se com ela, uma versão envelhecida dela, e essa é a
maior das traições. Acaba muito mal, esse conto, num acto de homício tresloucado
que destroi o espelho traidor e a mulher dentro dele e depois usa o corpo
qubrado do seu amor para pôr fim à sua vida.
Hoje não escreveria esse conto, parece-lhe que lhe deu um
fim demasiado apertado. Deixou de gostar de portas fechadas nos seus textos, só conhece uma porta que se fecha em definitivo e não tem pressa em atravessá-la e cerrá-la atrás de si. Tranca em vez disso a de casa, com sarcasmo na ponta dos dedos. Sabe porque continuará ali o espelho. Tem visto a sua figura
mudar nele diariamente e, por isso, parece-lhe que nada mudou nela nos
últimos anos. Congelou algures da década de 90, quando era jovem e as histórias como
essa da mulher ciumenta eram comboios desgovernados de ideias, e o espelho insiste em
devolver-lhe ainda esse homem impossível. Não sabe onde reside essa ilusão teimosa, se na superfície reflexiva, se no negativo nos seus olhos, mas gosta de ver-se nesse engano, agora que as palavras já não lhe chegam como
antes, que o bloco que leva sempre consigo não se abre em qualquer parte para registar um impulso repentino e tem dias como
esse, de fim de Verão, em que nem a secretária perpendicular à janela por onde o
sol e canto dos pássaros lhe invadem a casa lhe abrem caminho para elas. Vai tomar um café, ouvir falar de futebol. Não lhe interessa o futeol, não gosta da conversa no café da esquina, mas está cansado de ideias.
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