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sábado, 18 de julho de 2015

O escritor e o autógrafo

Quando a mulher se afasta com o autógrafo e uma pergunta por fazer, que ele adivinha na expressão mas não incentiva, o escritor pensa que devia ser mais simpático. Depois o leitor seguinte aproxima-se e ele muda de ideias, como já fez tantas vezes, parece-lhe que assim é que está bem e assina, sem dedictória e sem conversa, só um rabisco e a data e o homem, desta vez um homem, são sempre menos mas ele ainda os tem como leitores, segue quase passo a passo o caminho da mulher antes dele e desaparece na multidão na larga entrada da livraria. O escritor acha que leva uma expressão indiferente. Talvez o livro afinal não lhe interese e lhe tenham encomendado o autógrafo. Tanto faz. 

Assina assim vários volumes do seu último livro, em silêncio, como se não estivesse ali. Não está, pelo menos na totalidade, parte dele continua perpendicular à sua janela, sentado a ver a chuva cair em vez de escrever.  Outro livro pousa à sua frente e a mulher que o trouxe sorri-lhe, ele retribui porque o livro que ela trouxe não é o novo. É o seu primeiro. Fá-lo com parcimónia, porém, não quer que o leitor seguinte lhe exija o mesmo. Raramente olha para os rostos, em geral vê apenas as mãos, a maioria feminina e bem cuidada, unhas lacadas nas mais variadas cores, de quando em quando uma sem adornos, a espreitar de um punho de camisa de homem. Prefere essa aura de distância e indiferença, que o afastam da vulgaridade do mundo. Pensa que é melhor que pensem que o escritor vive num mundo aparte. Que não vai às compras e não usa a casa de banho. Que vive de letras, alcoól, escassas horas de sono, cigarros. Ele não fuma. Bebe um pouco, talvez, dorme muito mais do que devia, por vezes fora de horas.

E é melhor que pensem que pouco se importa com os livros ou o que deles pensam os que os leem. E no entanto, ali está ele, a assinar volumes, precisa que lhos comprem ou terá que empregar-se numa coisa qualquer. Por ora não precisa. Ocorre-lhe que tambem aquilo é trabalho, e fora de horas. É Sábado e ali está ele outra vez. Na véspera foi outra cidade, outra grande livraria num espaço comercial. Amanhã será outra. Por um momento, sente-se uma pop star, em tour pelo país. Ou afinal é estrela pimba, o autor de elite? Pergunta-se se terá corado. Tem o impulso para levantar-se  e abandonar a fila de gente que ainda espera. Passará pelo escritor caprichoso, que faz tudo a seu bel-prazer. Ingrato e talvez um pouco louco. Servir-lhe-à essa fama? É um passo adiante da que agora tem e tanto lhe custou a cultivar. Não consegue decidir. 

Outro leitor, mais um homem, estende-lhe o livro aberto, murmura um nome que ele não escreverá e aguarda. Ele aceita o livro. 

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