Páginas

sábado, 11 de julho de 2015

O escritor compõe a história

O escritor tem de compor a história. Andou com o enredo para trás e para a frente, imaginou, reconstituiu, saltitou, transformou-o numa salganhada com buracos pelo meio. A história olha para ele, o escritor olha para ela e vê um Picasso, sorte teria se o seu trabalho valesse tanto, mas vê-o assim, tombado, a precisar de puxar narizes e orelhas para que se entenda. Uma figura desfeita está muito bem numa tela, nos seus livros não serve. Tem de compô-la, mas primeiro tem de encontrar outra palavra para o que vai fazer. Compor soa-lhe caseirinho, compor flores numa jarra, compor a roupinha. Tem um sabor entediante a normalidade e rotina. Pensou nisso nessa manhã no duche, à janela, à sua mesa no café da esquina, pensa nisso há horas na sua secretária perpendicular à janela. 

Estica os braços acima da cabeça, para fazer estalar as costas. Doem-lhe, é o preço que o corpo paga. A cabeça paga outro, mais alto. Tem uma sensação familiar de impotência que lhe vem só da preguiça. Não lhe falta o texto desta vez, como lhe contece por vezes antes da história se desenhar. Tem um plano mas não lhe apetece cumpri-lo. Não lhe apetece cumprir nada nesse momento, nem sequer os rituais do dia. Levanta-se e vai ouvir o dia à janela. Os pássaros estão mais sossegados agora, a manhã quase se esgoltou e o calor já os empurrou para as sombras das folhas. Tem sono, apesar de ter dormido muitas horas, talvez seja a terrível canícula de Julho na cidade ou talvez seja a necessidade de compor que lhe rouba a energia. Talvez devesse ir viver para o campo ou, porque ama a cidade, talvez devesse ficar ali e escrever outra coisa, até lhe chegar a coragem para atacar esta de frente. Sai da janela e vai meter a cabeça debaixo da água fria. Pensa que tem de cortar o cabelo em breve, quando o sente a pingar sobre a T-shirt. Está grande. 

Volta para o texto, a pensar em desistir e sabendo bem que não o fará. Não por ter algum amor em particular por esta história, depois de tantas é mais uma. Vai ser boa, se a acabar, mas há muito que nem as boas histórias lhe suscitam emoção e é melhor assim, parece-lhe. Se a demolirem depois de deixar de ser sua, ou se a ignorarem, não lhe custrá mais do que sua vaidade. 

Não a abandonará, portanto. Já se enrolou antes e nunca desistiu, já compôs outros enredos, raio da palavra, não encontra outra. Que escritor é ele afinal? Já lhe aconteceu precisar até de reescrevê-los, para encaixar tudo nos sítios certos. às vezes era como fazer um puzzle sem ter a certeza de ter todas as peças, e ele nunca teve paciência para eles. Mas é assim que escreve, embora não o confesse. Estão convencidos de que é escorreito e imediato, o texto da cabeça para o livro impresso em linhas direitas. Tem muitos livros publicados e nenhum foi assim, mas o mito fermentou e, como lhe agrada, deixou-o viver. Talvez um dia seja desmascarado, talvez morra velho com a fama colada a ele. 

Por ora, vai buscar um copo de água e senta-se outra vez à secretária, sentindo falta do tumulto da passarada. Levanta os dedos e, após um momento de hestitação, cansa-se também disso, das hesitações, retoma o trabalho industrioso de compor o que está descomposto.

Levanta-se, para desentorpecer as pernas. Apetece-lhe um café, mas não gosta dos que se fazem em casa e não quer ir ao café outra vez. 

Sem comentários: