Páginas

sábado, 21 de fevereiro de 2015

a medida para o mundo

Abres os olhos para um dia indeciso, nem sol nem chuva, e ficas tu próprio indeciso sobre sair da cama ou permanecer no calor do corpo, que tão bem te acolheu enquanto dormias. Fechas os olhos e voltas a abri-los. Já não dormes. 

A luz lá fora provoca-te, não gostas de perder horas do dia. Há coisas para fazer, ou coisa nenhuma para fazer, a não ser estar desperto. Há que estar sempre desperto, essa sensação diária de ter o fim da vida lá, tão longe, algures na bruma indistinta de um futuro distante, quando os anos te tiverem dobrado ao meio e vincado de rugas, de ser afinal eterno até lá, não é real. Todos os minutos são preciosos, cada fôlego. Tens uma noção clara da tua mortalidade por um segundo e a guinada do medo é aguda no estômago. Empurra-te pata fora da cama, vais lavá-la do teu corpo. Sabes que és movido pelo medo, um medo debilitante, e não gostas. É preciso mais do que isso.

Tem pouco importância o que tens para esse dia. Ficas grato, aliás, se nada vier perturbar o fio das horas. Não precisas de movimento, não precisas de companhia. Precisas apenas de estar contigo e respirar, de te perderes dentro da tua cabeça. Tens o mundo inteiro na cabeça em palavras, nas nervuras do teu cérebro desenham-se em letras de imprensa todas as viagens que fizeste, todas as viagens que poderias ter feito, todas as que talvez ainda faças, se esse medo não te amarrar os pés. Tens o azul translúcido e brando, tens as vagas enormes de um mar zangado e o cheiro a maresia de oceanos distantes, tens a força de troncos de árvores, a explosão de verdes, as sequóias e bétulas e salgueiros e pinheiros bravos das florestas de toda a parte, tens o odor do asfalto e as linhas direitas e altas, o refulgir do vidro no cimento de edifícios modernos, os requebros e o colorido surpreendente das fachadas restauradas, tens as lojas e as feiras, e tens a fome dos bairros desfeitos de todas as cidades do mundo, tens corpos, olhares, gestos. Respiram todos a um só tempo, prenhes de vida das coisas inertes e das coisas móveis, da inteligência dos bichos e da inteligência do homem, das memórias encerradas em pedra e letra e das outras, passageiras, que se hão de esgotar nos milhares de milhões de últimos suspiros. E tu sabes, são todas tuas, porque, mesmo encerrado em ti mesmo, a todas imaginas. Essa infinda, incontrolável, invencível imaginação. Essa estranha empatia que por vezes te sufoca e te faz virar a cara e parecer insensível. Frio como um peixe.

Lembras-te do que ouviste certa vez, todos os lugares são iguais, viste um, viste todos. Sabes que é verdade, porque os viste todos sem teres visto a maior parte. E a mais absoluta das mentira. Nenhum lugar é igual, movem-se a ritmos diferentes, têm na alma diferentes canções, enchem-se de gente que nasce toda na dor e no sangue, entre as pernas de uma mulher, e depois cresce para a diferença. Ilusória diferença que atira corações e fígados e rins e pulmões feitos da mesma massa para lados opostos da existência, destinos feitos diferentes pela invenção. Fronteiras de terra e de oportunidade e de sexo e de crença. É de gente, tu sabes, que há muito se fazem os lugares. O que de bom isso tem, tem de mau. Mas não importa, mal e bem cabem-te na imaginação.

Sais para a rua e afinal está sol. Pensas nas partes do mundo em que está sol, nas partes do mundo que sucumbem sob o excesso de sol, nas partes do mundo que se enterram em neve e de água. Naquelas em que nada disso importa, importa viver outro dia. Sabes que pensas nelas à medida do homem, de ti próprio, será assim enquanto as coisas te vierem em palavras. A palavra é a tua medida para o mundo, para o conteres e para o devolveres. Sabes que estás fechado dentro de ti com todas elas, bem contidas na sua diversidade. Sorris. Hoje talvez seja manhã de palavras. Talvez não, mas não importa. Amanhã vencerás outra vez o medo ao despertar. Amanhã o mundo cá estará contigo, 
  

Sem comentários: