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domingo, 3 de agosto de 2014

da revisão de texto - quem escreve é muitas vezes mau juiz do seu trabalho

Este post não é para ser levado a sério...a não ser por quem queira levá-lo a sério. Na verdade, reflecte apenas a forma como procedo e um ponto de vista que é o meu, e pronto.

A propósito de um post no facebook em que um autor (creio que não é português, mas como não conheço...) anuncia que o seu próximo livro será fantástico... ou será maravilhoso... ou extraordinário? Não importa, é nessa linha. Diz o autor que sabe que será assim porque colocou nele todo o seu esforço e, presumo, capacidade de escrita. Como disse, não conheço nem autor nem livros, logo não posso avaliar da justeza da sua presunção, que a mim me soa muito presumida - mas disso e de água benta, cada um toma a que quer, não é o que diz o ditado? Pode ser excelente, não sei nem é isso que importa.

Ocorreu-me foi que quem escreve é muitas vezes mau juiz do seu trabalho, por vezes porque tem pouca confiança nele, sim, mas mais ainda se é pouco exigente ou mau juiz de si próprio também, ou se tem o seu produto em tão alta conta que não admite a possibilidade de falhar. E quem tem experiência não está livre de vaidades.

O processo de escrita é sempre longo e complexo, o que não quer dizer que o que no final sai dele seja bom. Não falo da impossibilidade de agradar a gregos e troianos, mas da hipótese do resultado ser um texto f com erros a vários níveis. O autor está feliz porque terminou as 250 páginas e deu um fim à coisa? Sem dúvida. Gosta do que fez? Claro! Mas é bom? Pode ser ou não. Pode ser fantástico, como diz o autor do facebook, pode ser sólido, ser razoável, ter aspectos a limar mas ser promissor, ou pode ter falhas enormes e irremediáveis, as piores uma narrativa fraca e batida e personagens cliché, a partir das quais não se consegue melhorar nada. Só reescrevendo tudo... com outra história... e outra gente dentro dela. Nada é novo, é verdade, o que significa que é preciso que o autor se apodere (e faça seu, logo novo) do que já foi decerto feito, de outra maneira, por mais alguém. Que tenha uma voz, uma forma de expor a sua história que seja única e o torne interessante pelo menos para os gregos. Ou os troianos.  

Posto isto, se não temos uma editora que queira tudo o que vomitamos porque vendemos como pãezinhos quentes, ou uma que nos aponte os pontos fracos (quando os há), ou seja, quando andamos nisto de novo e não somos ninguém, como saber em que categoria cai o que parimos com tanto esforço e muito prazer? Para mim, e só por mim posso falar, há quatro momentos: 

1ª. 
Pôr um ponto final, o que não é fácil para quem, como eu, vai escrevendo e revendo, e deixar o texto "repousar" uns meses, para se verem bem as impurezas. Não lhe mexer, mesmo que seja grande a tentação.

Revê-lo com absoluta honestidade. Como se não fosse nosso, com a coragem de cortar, zás-zás, alterar, abandonar o que, se o texto não fosse nosso, nos faria levantar uma sobrancelha de cepticismo. Acrescentar, também, se for caso disso, resolver "buracos" na intriga, se os houver, atar a pontas soltas. 

3º. 
Dá-lo a ler.  Para mim, a fase seguinte, depois do pousio e da primeira revisão, é "entregá-lo" a meia dúzia de pessoas que sejam brutalmente honestas. Não à mãe e àquela amiga que gostam tanto de nós que tudo o que fazemos é maravilhoso e se não é não nos diriam... errr... a minha mãe diz, se a coisa não presta ou estou mais gordinha, é certo que vou saber por ela! Nem à outra amiga que gosta de tudo o que lê, até dos rótulos da comida para gatos. É até bom se alguns desses leitores não nos conhecerem pessoalmente, melhor ainda se forem reconhecidos por serem exigentes e maus (eu sou,) e tiverem diferentes gostos. Ficamos a conhecer não só os pontos fortes e fracos das nossas narrativas, como a quem elas poderiam agradar. Ou não. Claro que, para isto, é preciso:

  • ter a paciência para esperar que as pessoas possam ler, não andam ali à nossa disposição!
  • estarmos dispostos a ouvir, sem nos indignarmos, o que têm para dizer. Se não queremos ouvir críticas honestas, que por vezes são desagradáveis, temos duas hipóteses: as tais amigas ou deixar tudo na gaveta. Estamos sujeitos à crítica quando o livro é publicado, mais vale encarar a opinião sincera, boa e má, como treino.  
  • saber defender os nossos pontos de vista, i.e., não desatarmos a alterar tudo o que cada um nos diz que não está bem. Muito disso cai no capítulo "gregos e troianos", o relevante são os erros mais apontados (se dos 6 leitores, 4 dizem que tenho erros de construção sintática... se calhar tenho! Se 3 apontam o mesmo plothole ou uma personagem que não faz sentido, se calhar devo resolver a questão...) e a impressão geral (quase todos gostaram? fixe! ninguém gostou? lixo!)

Revê-lo com absoluta honestidade.... outra vez, à luz do que acima aponto. Uma revisão, duas... vinte, sabendo que o primeiro (e o segundo) ponto final no texto não pode ser definitivo. E depois, saber quando realmente pôr fim à coisa. Para mim, é capaz de ser o mais difícil, quantas vezes abra o ficheiro, tantas encontrarei uma frase, um parágrafo inteiro, uma cena que pode ser melhorada... razão pela qual não leio o que está publicado e já não posso alterar. 

Um 5º passo seria, com a história em condições, enviá-la às editoras... e ter paciência, costas largas e expectativas baixas.  

Posto isto, as minhas histórias são sempre:

  • fantásticas enquanto as escrevo;
  • horríveis quando as revejo;
  • maravilhosas se os meus primeiros leitores, os beta, gostam delas;
  • irritantes à décima sétima revisão, eheheheheh;
  • surpreendentes quando são publicadas;
  • boas quando as vejo opinadas num sítio qualquer;
  • más quando as vejo opinadas num sítio qualquer;
  • horríveis quando o tempo vai passando e o livro "desaparece"!




4 comentários:

Ana C. Nunes disse...

Carla,
Concordo praticamente com tudo o que dizes e é verdade que, grande parte das vezes, não somos as melhores pessoas para criticar o que escrevemos.
Adorei especialmente a lista final. Tão certeira!

Cristina Torrão disse...

Tudo verdade. E tão bem explicado ;)

Tenho problemas em «não desatar a alterar tudo o que cada um me diz que não está bem». Ou melhor, antigamente tinha mais, agora reflito e talvez não altere. Às vezes, há coisas que nós já desconfiamos que não estão muito bem e a opinião dos outros nos confirma. Mas é verdade que o texto é nosso e somos nós que temos a última palavra.

Inês Montenegro disse...

Impressionante, não podia concordar mais. Espero é ter a tua paciência para rever e esperar pelos leitores-teste quando chegar a minha vez =D

Inês Montenegro disse...
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