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quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

infinito enquanto dure

Fazem-se escolhas a todo o instante. Algumas têm importância. Nessa altura ele empurrou-lhe a escolha e foi importante. Tantos anos depois tinha apenas a importância das memórias recorrentes. Guardava a relevância dos acontecimentos que deixam rugas por dentro. 
Ela não queria, não estava certa, não sabia, e ele empurrou-a com palavras, nessa tarde. “Escrevi esta história há uns tempos, queres ler?” e estendeu-lhe um caderninho preto repleto de palavras Para a Cláudia. O nome em letras tombadas na primeira página sobressaltou-a, não era ela, não queria ler o que não era seu, estendeu-lhe de volta a sua intimidade. "Lê. Pensa em mim." Devorou pela noite dentro as palavras dessa história que, se ainda guardasse pormenores, hoje a faria rir. Na altura, entre os lençois no seu quarto de rapariga, deixou-se arder num ciúme de não ser ela, não ser para ela. Queimou de desejo de ter palavras dessas para si.

Teve muitas. Nenhuma história, mas muitas longas cartas  escritas à mão, de saudade de casa longe dali e de paixão por ela. Lia-as junto dele com um nó na garganta, relia-as sozinha no seu quarto, nas noites de insónia que já na altura tinha. Entre os dois, leram muito e, nas tardes vazias de aulas e pais, aprenderam o engano das palavras, o sexo, quase quase o amor, e ele ensinou-a a amar o próprio cheiro.
"Cheiras a amor." 

Um fim de tarde já escuro, muitos meses depois, podia ser Natal mas essa  exactidão já lhe escapava, ele ofereceu-lhe um livro de poemas. Para a L., para ela, “Que seja infinito enquanto dure”. Reconheceu a frase de Vinicius e descobriu que o fim dos dois estava ao dobrar da esquina. Fechou os olhos para ignorar e ele feriu-a, quando deixou de escolhê-la. A ferida sarou mas ficou uma cicatriz na sua habilidade para amar intensamente. Nunca mais amou da mesma forma o própro cheiro. Lembrar tem o sabor agridoce, um pouco dorido, das coisas boas de mau fim. 

Mesmo assim tem pena. Gostaria de saber em que fundo de armário terá enterrado essas cartas, ou a quem teria emprestado esse livro de dedicatória com um sabor salgado a fim. 

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