Têm sido tão raras as opiniões literárias por aqui, que até temo já nem saber escrevê-las. Vamos a isto.
Este livro, que foi prémio Leya em 2013, constrói uma ficção de arraiais assentes no Alentejo (é um livro "alentejano", sem dúvida, e isso é bom), a partir, segundo percebi, da personagem real João Francisco Carreço Simões, que foi importante no desenvolvimento da cidade de Estremoz até meados do século XX.

Temos vozes femininas e masculinas e cada voz se apresenta com uma natureza própria, num momento diferente e com coisas distintas para contar, que não parecem, num primeiro momento, contribuir de forma clara para uma história global. Aos poucos, porém, os fios vão-se entrelaçando e distinguimos a relação entre narrações, descobrimos segredos que vão ficando de umas para outras (que não são difícies, a partir de certo ponto, de adivinhar, ou talvez seja culpa minha e do meu desconfiómetro). O livro conquistou-me logo na primeira voz, à página 25, que é, na prática, a terceira página da história, com uma descrição de uma brincadeira de miúdos, pela voz de um rapazola de quinze anos. Brincadeira de médicos, como todos tivemos, envolvendo a simulação de injecções:
Depois era a minha vez de levar a injecção, mas ela [a irmã] era uma médica bem mais cruel do que eu: não se contentando em esborrachar o gargalo de vidro contra a minha nádega, espetava também a unha do indicador com tanta determinação que, não raro, me arrancava gemidos de dor. Entretanto, já eu estava a tentar puxar as cuecas para cima, desinteressava-se do meu rabo e metia-me a mão entre as pernas à procura da lombriga. Era assim que ela dizia, lombriga, e eu sentia a faces escaldar e tentava em vão proteger-me das investidas daqueles dedos que tudo faziam para me apertar as bolas.
Não apreciei todas as vozes por igual, embora as tenha apreciado muito quase todas, pelas diferenças de tom e de conteúdo. A única que me fez passar algumas páginas foi a terceira, por uma questão de gosto pessoal. Não me seduzem as vozes que clamam pela morte, que se rodeiam de desgraça - ainda que, neste caso, seja compreensível e que a parte da história narrada por ela, a voz masculina, seja interessante. Pareceu-me também a mais distante do núcleo central da história, até no tempo, e a que menos acrescenta ao seu panorama geral. A voz da prostituta, a última, é, ao contrário, provavelmente a mais relevante na construção da personagem que motiva o livro... e é deliciosa.
Tinha alguma intenção de passar as páginas do diário no fim do livro - tive vários diários em miúda, mas a diarística tende a aborrecer-me - mas acabei por não o fazer. Ainda bem. Estas páginas decorrem em Angola, onde nasci, e reforçam a imagem que tenho recebido dela por via interposta, uma vez que eu própria não tenho recordações. É a que tenho vindo a transpôr, aos soluços, para um livro que pdoe levar uma ou duas eternidades a terminar... Esta parte do livro tem, também, uma das expressões de amor mais bonitas que tenho lido:
Se tu fosses uma árvore, meu amor, serias um embondeiro. Grande, sólida, resistente, e subitamente transbordante de flores puras como aves, e de frutos que escondessem toda a frescura de uma noite sem lua.
Uma leitura, sem dúvida, muito interessante.
1 comentário:
De quatro Prémios LeYa que li foi do que gostei mais.
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