
Uma nota, antes de mais, para a capa desta edição, que acho lindíssima.
Num capítulo prévio, espécie de prólogo ou prefácio, o autor narra como se deparou com o manustcrito que se encontra transcrito, ou romanceado, afirma, em O Último Cabalista de Lisboa. Escrito pelo narrador Berequias Zarco em meados de 1500, conta o assassinato do seu tio Abraão Zarco, iluminista de excelência e cabalista, durante os terríveis acontecimentos do massacre dos judeus em Lisboa em 1506, quando Lisboa se encontrava numa situação desesperada, com a peste que grassava há já algum tempo agravada pela seca e fome. Os judeus, forçados nos últimos 20 anos à conversão, viviam momentos particularmente difíceis, já que quaisquer sinais de judaísmo poderiam levar a denuncias e condenações.Os judeus eram forçados a assumir a máscara de cristãos-novos, alguns procurando renegar a antiga crença, a generalidade mantendo em segredo os costumes e alguns sonhando sair de Lisboa rumo a Constantinopla... Vivia-se com medo, pouca esperança e, para os judeus, nenhuma possibilidade de sair do país. Fiquei intrigada com a ideia destes manuscritos, que tanto poderiam existir de facto, como ser pura invenção do autor. Tudo é possível em ficção - até fingir a realidade. Fiz uma pesquisa rápida que não me levou a lado nenhum, perguntei a quem também já leu o livro e acredita que os manuscritos são reais e pensei em pesquisar mais um pouco, mas embrenhei-me na leitura e deixou de ter importância. Entretanto, já fui avisada por quem ouviu da boca do próprio autor que os manuscritos NÃO são reais. não senhora. Obrigada, Cristina Drios.
A narrativa está estruturada sobre o assassinato de Abraão Zarco e a investigação do narrador Berequias/Pedro Zarco, seu sobrinho e discípulo na arte da iluminura e da elevação religiosa, que persegue obsessivamente o criminoso ao longo destas páginas, em detrimento do cuidado de si próprio, da família e da comunidade. Tal é a sua ansiedade para encontrar o assassino do tio, que esquece inclusive o seu ensinamento: nunca esqueças os vivos a favor dos mortos. A solução suscitou-me curiosidade, claro, está bem pensada (não revelo mais nada), mas com tanto para absorver ao longo das páginas, sucedeu interessar-me menos por ela do que pelo resto, como aliás já acontecera com Os Anagramas. O livro não pretende ensinar nada e não é doutrinal, mas, para um leigo como eu, há muito para conhecer sobre o judaísmo e é, aliás, necessária alguma curiosidade para apreciar os aspectos religiosos, mas estes estão, a meu ver, bem equilibrados na narrativa. Claro que, por conhecer tão mal o judaísmo, houve pormenores que me escaparam - sobre os rituais, por exemplo, nomes, histórias do Velho Testamento, que por acaso até li, há muitos anos - mas nunca me impediram de apreciar a narrativa. Também é preciso estômago para ler sobre o massacre de Lisboa (durante o qual o crime sobre Zarco é cometido), porque Zimler descreve sem pudor o ambiente da cidade de Lisboa, numa presença tão forte que a senti muitas vezes quase como uma personagem. É muito fácil imaginá-la na época através destas páginas, tortuosa, picaresca, imunda e fétida populosa, fanática, temerosa... Zimler mostra, neste contexto, as injúrias, torturas e mortes inflingidas aos judeus, homens, mulheres e crianças, actos a que os cristãos velhos apavorados são incitados pelos frades dominicanos, sob o pretexto de que o sacrifício dos marranos, cristãos-novos, seria a solução para limpar a cidade de pecados e trazer dias melhores. Não é fácil sacudir algumas das imagens...
O horror nestas páginas surge, porém, contrabalançado por um ambiente de busca "policial" e por muitas expressões de generosidade, de amor fraternal, de amor pela família, de cepticismo religioso ou, pelo contrário, de convicção, de busca pelo equilíbrio e paz interior, apresentando o judaísmo sob uma luz que parece perdida, a tantos séculos de distância e quando a questão de Gaza está nas notícias todos os dias e não deixa bem vistos os Israelitas (nem os muçulmanos). Um facto curioso? Judeus e muçulmanos são quase aliados, nesta Lisboa em que o cristianismo fanático se volta contra os judeus. O melhor amigo, irmão do coração de Berequias é Farid, jovem poeta muçulmano muito belo, homossexual e surdo-mudo. Berequias é salvo do massacre por outro muçulmano. Os judeus de Lisboa sonham com Constantinopla, hoje Istambul, onde são muito bem recebidos e muito bem considerados pelo sultão...
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