Páginas

sábado, 19 de julho de 2014

Desgraça (Disgrace) - J.M.Coetzee

Fui na segunda feira aos Correios e tinha mais de 20 pessoas à minha frente. Depois de espreitar os livros todos nos expositores, peguei na versão de bolso deste Desgraça, que há muito queria ler. Foi a minha estreia com o autor, que já sabia ser bastante duro, mas na verdade o livro começa suavemente, quase com leveza e, enquanto esperava, li umas 30 páginas. Diz muito sobre a qualidade da escrita e a forma como prende.

Fiz mal em pegar-lhe, porque acabei por comprá-lo quando tenho uma pilha por ler, e muito bem, porque foi uma leitura fantástica.

A minha primeira nota, porém, é um pequeno protesto: sendo o título inglês Disgrace, ter-me-ia parecido muito melhor e mais adequada ao texto a tradução Vergonha. Não que não haja uma boa dose de desgraça aqui, mas a vergonha, o cair em vergonha, é mote e motor da história e é o que, quanto a mim, deveria ter ficado. Porque não aconteceu, não sei. Talvez seja a minha interpretação que está errada.

A segunda é que não sei quase nada sobre a fase pós-Apartheid da África do Sul.  Admiro Mandela e considero o Apartheid uma aberração, mas não conheço o sentimento do país, menos ainda nos anos imediatamente após o fim. Não sei até que ponto houve inversão de forças ou o que implicou no sentimento dos sul africanos, brancos e negros, quem teme quem, e, se alguém domina, quem é. Sei o que se ouve nas notícias, que o centro de Joanesburgo é perigoso e imagino que o resto do país também. Foi-me contado por quem lá esteve que, mesmo nos arredores confortáveis da cidade, as casas estão bem protegidas. A pobreza é extrema e a violência é diária.

Este livro, escrito em 1999, tem essa realidade como fundo e não a pinta em tons positivos. Há um fundo de violência que parece advir tanto da própria terra, difícil, ainda selvagem, como do ódio racial, a nossa gente (uma e outra, branca e negra) e a vergonha de admitir essa barreira. É um país caído na vergonha, primeiro do Apartheid, depois do que se lhe seguiu - um país onde o crime não é sempre punido e o branco por vezes baixa a cabeça, in disgrace, forçado a adaptar-se a uma realidade agreste. Sente-se também um domínio masculino, como se tivessemos regressado uns anos atrás no tempo, que vem tanto da perspectiva da personagem central, que é, como ele diz, um "sensualista" pouco apaixnado, como da cultura que domina na áfrica negra - ou na zona, ou no caso específico deste livro. Não sei.

Neste pano de fundo, esta personagem , narrador na primeira pessoa, professor universitário de 52 anos, a envelhecer depressa, é vítima da sua própria disgrace. Auto-inflingida, é certo, culpa dos seus impulsos sexuais e do seu orgulho, mas que o empurra para fora do seu ambiente e para junto da filha adulta, no campo. Não tenciono narrar a história, embora fosse simples fazê-lo. Os acontecimentos não são complexos, podia contá-los em meia d+uzia de linhas. Seria redutor porque o que sucede, sendo simples de contar, é extremamente complexo.

A simplicidade aparente do livro - da escrita, da estrutura - não constrói pois um livro simples. Trata-se de uma história sem contemplações, à imagem do próprio narrador, que tem uma visão cada vez mais crua de si mesmo e do mundo, e violenta a muitos níveis, que me fez ler muitas vezes de sobrolho franzido, aqui e ali um pouco sufocada, aqui e ali um tanto horrorizada, em momentos irritada com a passividade e aceitação teimosa de algumas personagens. Com a impunidade dos crimes. Com a brutalidade inerente aos actos mais generosos... E, no entanto, foi uma leitura quase compulsiva, mesmo quando  me apertava o peito.

Previno ainda que, tratando-se de uma leitura dura para todos, o será mais ainda para quem gosta particularmente de animais, ainda que haja alguma ternura implícita...

Sem comentários: