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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Deixar-se cair


Está suspensa sobre um poço, numa sala profusamente iluminada. Não sabe há quanto tempo, mas sente que deve ter decorrido uma eternidade. Olha. Parece‑lhe que está inteiramente nua, mas, na verdade, não consegue ver-se bem, a não ser as pontas dos pés, rosadas, tenras, dedos minúsculos. Tão estranho, são realmente seus. Lá estão, a mexer-se. Em baixo, o buraco redondo não tem margens, nem cor, nem som, nada. Há uma vaga sensação de calor, mas não tem a certeza de onde vem. Tenta mover-se, e o corpo oscila suavemente, como se estivesse pendurada de uma corda. Não há corda nenhuma. Paira, simplesmente, mas, estranho,  isso não a faz sentir-se insegura. Uma infinidade de rostos espreita, as faces obscurecidas pela luz excessiva. São vagamente familiares. Ou não, sabe lá. Mas também não a assustam. Estão simplesmente lá, como se pertencessem. A única coisa que a fere é a luz. Demasiada luz, demasiado pura, uma lança a atravessar-lhe dolorosamente o cérebro.  Procura em vão uma saída, uma porta, para fugir dela. Nada. As paredes são lisas. Lisas e brancas.
 
 

Teresa abriu os olhos, meio sufocada, e o sol ofuscou-a um instante. Tinha adormecido? A voz de Clara regressou aos seus ouvidos, insistente. Mas o que é que ela estava a dizer? Ainda estava a falar da mesma coisa. Merda. Oxalá se calasse um bocadinho e a deixasse pensar.
Não adormeci. Mas que raio é isto?
- Foi mesmo esquisito. - disse a amiga, por cima da chávena - O tipo tinha assim um ar de coisa nenhuma, percebes?, mas não penso noutra coisa.
- Hum-hum. – respondeu, distraída. Respirou fundo, com a esperança de que o perfume quente do café a despertasse. Não resultou. Continuava à procura da saída nas paredes lisas que a fechavam, mesmo com os olhos abertos.
Tem que haver uma, há sempre.
- Não me pareceu nada que viesse a negócios. – continuou Clara –  Vê lá tu que me mandou resolver os meus assuntos, como se eu fosse uma incompetente qualquer!
- Ficaste com o contacto dele?
Era, claro, uma pergunta de cortesia. Não lhe interessava a resposta. Sentia-se sem peso, suspensa. Avaliou a temperatura no alto da cabeça com a palma da mão. Quentita, mas nada de especial. Não o suficiente para lhe derreter os miolos.
- Ele nem o nome deixou, o contacto, nada! Nem cheguei a perceber se tinha ou não pressa em ser atendido. Foi-se embora sem marcar coisa nenhuma, e eu fiquei a atender a porra do telefone, porque a parva da Alice, para variar, não estava. – protestou – Deve ter uma bexiga do tamanho de uma uva!
 A  estranha entrevista que não tinha marcado não lhe saía da cabeça, principalmente porque começava a fugir-lhe da memória. Teria sido na véspera? Talvez não, podia ter sido há dias e dias. Ou nessa manhã. Ocorreu a Clara que não conseguia lembrar-se do rosto do tipo que lhe aparecera de surpresa, nem da altura, nem de nada. Mas recordava-se bem, que esquisito, do seu andar ridículo, cuidadoso e controlado, como quem tem medo de sujar a sola dos sapatos. E do rasto de vazio que deixara atrás de si. Não sabia se havia de arrepiar-se, ou desatar a rir. Não fez nenhuma dessas coisas.
- Juro-te que se o homem me aparece outra vez de surpresa a dizer que temos um encontro marcado, - murmurou - chamo o Hélio.
- Quem é o Hélio? – inquiriu Teresa. Não queria saber. A sério que não.
- O segurança. Um soco daquilo, nunca mais te levantas.
Teresa encolheu os ombros. O Hélio era um gorila. O homem era esquisito. Que importava? Esquisita estava ela. Não devia ter vindo almoçar com a Clara hoje. Tinha dormido mal outra vez e não tinha paciência para as experiências peculiares da amiga. Havia sempre qualquer coisa, um namorado novo com hábitos radicais, que saltava de montanhas ou gostava de bondage, uma leitura de tarot que previa para um futuro próximo uma viagem tresloucada e impossivelmente cara  às profundezas da selva vietnamita, à procura de uma serpente rara. Qualquer coisa. Às vezes era divertido ouvi-la. Hoje não. Terminou rapidamente o café.
- Vamos embora, tenho que fazer.
Clara talvez ficasse aborrecida, talvez não. Pouco lhe importava, tinha que fugir da luz do sol e da conversa sem sentido. Despediu-se com um beijinho e até à próxima, e ficou a vê-la afastar-se,  enfiando penosamente os saltos de agulha nos intervalos entre os paralelipípedos da calçada. Metros adiante, parou em frente a uma montra e ficou a avaliar os artigos. Teresa sorriu, sentindo uma ternura inesperada pela amiga. Clara era uma irmã, era mais do que uma irmã, mas por muito que que a amasse, a maneira como a sua mente funcionava era um mistério. Um delicioso mistério para durar uma vida inteira.
Abanou a cabeça quando Clara entrou na loja, provavelmente para estourar outra vez o cartão de crédito, e enfiou-se no carro. Apertou o cinto sem dar conta do que fazia. Ligou o rádio, um hábito. O pop agrediu-a, mas não o desligou. A janela do carro, aberta, trazia-lhe os sons impacientes do trânsito da cidade, travões, buzinadelas, roncos. Misturaram-se com a música, até nenhum deles ser coisa nenhuma. Maio em Lisboa. Muita gente, calor, suava-se ali. Suava‑se em todo o lado. A camisa colava-se ao banco, sentia-se exausta. 
Estarei doente? Apoiou a cabeça nas mãos cruzadas sobre o volante, para descansar um instante. Assustou-se quando um pombo levantou voo, empurrado pelo som agressivo de uma buzina de automóvel, num esvoaçar aflito de asas. Idiota. Um pombo. Caixote do lixo cagante da cidade. Muuuiiito assustador. Ridículo.
Ela era ridícula e ninguém sabia. Fechou os olhos. Asneira.


Continua misteriosamente sozinha e suspensa sobre um poço, numa sala profusamente iluminada. Nas paredes, retratos velhos miram-na de muito longe. Apertam o seu corpo pequeno e nú, desconhecido. Não há mais ninguém, mais ninguém respira. As paredes, redondas, continuam a não ter portas, nem janelas, nem saída, mas ela é incapaz de desistir de procurar, para fugir da luz. Há o buraco. Está escuro. Convidativo. Apetece‑lhe, ao fim daquele tempo todo, deixar-se cair.

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