Está suspensa sobre um poço, numa sala profusamente iluminada. Não sabe há
quanto tempo, mas sente que deve ter decorrido uma eternidade. Olha. Parece‑lhe
que está inteiramente nua, mas, na verdade, não consegue ver-se bem, a não ser as
pontas dos pés, rosadas, tenras, dedos minúsculos. Tão estranho, são realmente
seus. Lá estão, a mexer-se. Em baixo, o buraco redondo não tem margens, nem
cor, nem som, nada. Há uma vaga sensação de calor, mas não tem a certeza de
onde vem. Tenta mover-se, e o corpo oscila suavemente, como se estivesse
pendurada de uma corda. Não há corda nenhuma. Paira, simplesmente, mas,
estranho, isso não a faz sentir-se
insegura. Uma infinidade de rostos espreita, as faces obscurecidas pela luz
excessiva. São vagamente familiares. Ou não, sabe lá. Mas também não a
assustam. Estão simplesmente lá, como se pertencessem. A única coisa que a fere
é a luz. Demasiada luz, demasiado pura, uma lança a atravessar-lhe dolorosamente o
cérebro. Procura em vão
uma saída, uma porta, para fugir dela. Nada. As paredes são lisas. Lisas e
brancas.
Teresa abriu os olhos, meio sufocada, e o sol ofuscou-a um instante. Tinha
adormecido? A voz de Clara regressou aos seus ouvidos, insistente. Mas o que é
que ela estava a dizer? Ainda estava a falar da mesma coisa. Merda. Oxalá se
calasse um bocadinho e a deixasse pensar.
Não adormeci. Mas que raio é isto?
- Foi mesmo esquisito. - disse a amiga, por cima da chávena - O tipo tinha assim
um ar de coisa nenhuma, percebes?, mas não penso noutra coisa.
- Hum-hum. – respondeu, distraída.
Respirou fundo, com a esperança de que o perfume quente do café a despertasse. Não resultou. Continuava à procura da saída nas paredes lisas que a fechavam, mesmo com
os olhos abertos.
Tem que haver uma, há sempre.
- Não me pareceu nada que viesse a
negócios. – continuou Clara – Vê lá tu
que me mandou resolver os meus assuntos, como se eu fosse uma incompetente
qualquer!
- Ficaste com o contacto dele?
Era, claro, uma pergunta de cortesia.
Não lhe interessava a resposta. Sentia-se sem peso, suspensa. Avaliou a temperatura no alto da cabeça com a palma da mão. Quentita,
mas nada de especial. Não o suficiente para lhe derreter os miolos.
- Ele nem o nome deixou, o contacto,
nada! Nem cheguei a perceber se tinha ou não pressa em ser atendido. Foi-se
embora sem marcar coisa nenhuma, e eu fiquei a atender a porra do telefone,
porque a parva da Alice, para variar, não estava. – protestou –
Deve ter uma bexiga do tamanho de uma uva!
A estranha
entrevista que não tinha marcado não lhe saía da cabeça, principalmente porque começava a fugir-lhe da memória. Teria sido na véspera? Talvez não, podia
ter sido há dias e dias. Ou nessa manhã. Ocorreu a Clara que não conseguia lembrar-se do rosto do tipo que lhe aparecera de surpresa, nem da altura, nem de nada. Mas recordava-se bem, que esquisito, do seu andar ridículo, cuidadoso e controlado, como quem
tem medo de sujar a sola dos sapatos. E do rasto de vazio que deixara atrás de
si. Não sabia se havia de arrepiar-se, ou desatar a rir. Não fez nenhuma dessas
coisas.
- Juro-te que se o homem me aparece
outra vez de surpresa a dizer que temos um encontro marcado, - murmurou - chamo o Hélio.
- Quem é o Hélio? – inquiriu
Teresa. Não queria saber. A sério que não.
- O segurança. Um
soco daquilo, nunca mais te levantas.
Teresa encolheu os ombros. O Hélio era
um gorila. O homem era esquisito. Que importava? Esquisita estava ela. Não devia ter vindo almoçar com a Clara hoje. Tinha dormido
mal outra vez e não tinha paciência para as experiências peculiares da amiga.
Havia sempre qualquer coisa, um namorado novo com hábitos radicais, que saltava de montanhas ou gostava de bondage, uma leitura de tarot que previa
para um futuro próximo uma viagem tresloucada e impossivelmente cara às profundezas da selva vietnamita, à procura de uma serpente rara. Qualquer coisa. Às vezes era divertido ouvi-la. Hoje não. Terminou rapidamente o café.
- Vamos embora, tenho que fazer.
Clara talvez ficasse aborrecida,
talvez não. Pouco lhe importava, tinha que fugir da luz do
sol e da conversa sem sentido. Despediu-se com um beijinho e até à
próxima, e ficou a vê-la afastar-se, enfiando
penosamente os saltos de agulha nos intervalos entre os paralelipípedos da
calçada. Metros adiante, parou em frente a uma montra e ficou a avaliar os
artigos. Teresa sorriu, sentindo uma ternura inesperada pela amiga. Clara era
uma irmã, era mais do que uma irmã, mas por muito que que a amasse, a maneira como a sua mente funcionava era
um mistério. Um delicioso mistério para durar uma vida inteira.
Abanou a cabeça quando Clara entrou na
loja, provavelmente para estourar outra vez o cartão de crédito, e enfiou-se no
carro. Apertou o cinto sem dar conta
do que fazia. Ligou o rádio, um hábito. O pop agrediu-a, mas não o desligou. A janela do carro, aberta,
trazia-lhe os sons impacientes do trânsito da cidade, travões, buzinadelas, roncos. Misturaram-se
com a música, até nenhum deles ser coisa nenhuma. Maio em Lisboa. Muita gente, calor, suava-se
ali. Suava‑se em todo o lado. A camisa colava-se ao banco, sentia-se exausta.
Estarei doente? Apoiou a cabeça nas mãos cruzadas
sobre o volante, para descansar um instante. Assustou-se quando um pombo levantou
voo, empurrado pelo som agressivo de uma buzina de
automóvel, num esvoaçar aflito de asas. Idiota. Um pombo.
Caixote do lixo cagante da cidade. Muuuiiito assustador. Ridículo.
Ela era ridícula e ninguém sabia. Fechou os olhos. Asneira.
Continua misteriosamente sozinha e suspensa
sobre um poço, numa sala profusamente iluminada. Nas paredes, retratos velhos
miram-na de muito longe. Apertam o seu corpo pequeno e nú, desconhecido. Não há
mais ninguém, mais ninguém respira. As paredes, redondas, continuam a não ter
portas, nem janelas, nem saída, mas ela é incapaz de desistir de procurar, para
fugir da luz. Há o buraco. Está escuro. Convidativo. Apetece‑lhe, ao fim
daquele tempo todo, deixar-se cair.
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