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sábado, 16 de junho de 2012

Sombra

Estava com ela desde que se lembrava, essa sombra. Sempre por ali, sempre perto, a sua existência tão palpável como um braço ou uma perna. Muda, à espera que se movesse para mover-se com ela. Atravessava a casa, e lá estava. Atravessava a rua, e seguia-a. Não, não a seguia. Ia com ela. Nela. Colada a ela como uma segunda pele. Mais do que isso, estendendo os dedos de fumo dentro da sua cabeça.

Saíra de casa, esperando abandoná-la nas paredes onde a deixara nascer, gritando, no dia em que se apercebera que a sua existência era possível. Alimentara-a do medo de ser tomada por ela. Não teria medo se não a tivesse visto. Viveria sem medo se ignorasse. Mas a sombra existiria sempre. Sem seu conhecimento, seria uma pedrinha quieta algures no seu corpo, e cresceria suavemente enquanto ela crescia, ocupá-la-ia devagar de dentro para fora. Um dia seriam a mesma, sem nunca saber. 

Assim, lutara. Mudara a voz. Mudara o gesto. Mudara a alma. Mudara a vida, esperando que ela deixasse de reconhecê-la e se ficasse, imóvel no lugar onde pertencia. Mas os dedos de fumo lá estavam. Em cada dia menos fumo e mais metal, garras no seu cérebro. Afinal, sabendo ou não, esperava-a o mesmo fim: uma palava no momento errado, uma distração, e ela e a sombra confundir-se-iam finalmente, corpo e espírito. E já ninguém saberia distingui-las.
Na verdade, suspeitava que talvez já fossem uma só. Era possível que só ela, esperançada de ainda poder ser outra, não o visse. Talvez só ela, desejosa de ser única e livre, não soubesse. Talvez a sua voz o anunciasse, ou os seus gestos, as palavras, a forma como caminhava, ou sorria, ou amava mas se calhar não amava, se afinal não era ela, mas ela e outra. E talvez tivesse que partir. Ser melhor. Ser justa. Levar consigo o peso terrível dessa herança. Romper o ciclo, poupar aos outros o que não podia poupar a si própria.
O pior? O fantasma estava vivo. Ainda habitava outro lugar, vivo e inteiro, e já ameaçava habitá-la a ela. E ela? Outro fantasma, se calhar.

*imagem 'emprestada' do blogue luz&sombra

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