Não sei se posso chamar a este texto um conto. Talvez. É, pelo menos, uma experiência para mim, um desafio para quem raramente escreve coisas curtas . Bom ou mau, aqui está.
Estavam todos sentados no seu sofá, civilizadamente, e falavam. Quatro
de joelhos dobrados e costas direitas. Quatro pares de olhos familiares, frios
nessa tarde de verão. Quatro rostos desconhecidos. Pouco importava que
fossem os mesmos que, de quando em quando, celebravam à sua mesa, os mesmos por quem outrora cedera as suas noites.
Cedera tantas coisas, os seus desejos de menina, a frescura do seu corpo. Esses rostos tinham sido seus, tinha-os roubado o tempo.
Olhou cada um individualmente. O primeiro, traços duros, belos olhos,
era o lider, sempre fora. Era o que primeiro avançava, o que primeiro falava. Era o solitário, o que escolhera o caminho difícil da individualidade. O primogénito. Os
outros existiam como um todo dissonante, um alto, os outros baixos, cada um
deles com a sua forma de inclinar a cabeça, de estalar a língua, de coçar o
queixo. Uma equipa de vontades complementares, que alegremente se submetia ao
Primeiro. E era por isso que ela sabia quem planeara, quem decidira. Por isso é
que ela sabia que nenhum deles a não ser o Primeiro carregaria a culpa nos ombros.
Nenhum deles a não ser o Primeiro, porque era forte, porque Podia, sofreria a insónia da indecisão, o medo do
erro, o peso do que lhe faziam.
Entendia as palavras que lhe diziam. Entendera todas as que lhe tinham
dito até aí, em vozes tranquilas, como se não fosse nada. Nada. Como se essas
pessoas que amava não tivessem acabado de roubar-lhe qualquer coisa. Tudo.
Assim, de surpresa, sem um sinal, sem um aviso. Levantara-se nessa manhã como
noutro dia qualquer, e agora o resto da sua vida era outra. A vida de outra. Noutro lugar. Deixou-os falar, sorriu enquanto esgrimiam
entre eles as razões, um coro ensaiado de bom senso. Razões frias, naturais, elegantes,
que era preciso, que não podia ser de outra forma, que era o melhor. Razões que, a ela, nada diziam, porque era na
sua casa que estavam, era o seu chá que bebiam, nas suas chávenas, resguardados
do frio pelas paredes que, há muito tempo, quando ainda era capaz, ela própria
pintara, e pelos cortinados que, quando as mãos não lhe tremiam, ela mesma
cosera.
- Amanhã. – declarou, quando se calaram. E eles levantaram o queixo, e
depois o traseiro, sentado no tecido que ela escolhera, beijaram-lhe o rosto e
sairam seguros do seu dever.
- Amanhã. – repetiu o Primeiro, e foi-se embora no seu carro de homem
sozinho.
Ela fechou a porta devagar, a sua porta verde, e subiu as suas escadas
penosamente. Noutros tempos trepava-as num instante, ms não importava. Eram as
suas escadas, subia-as como quisesse. Como pudesse. No seu quarto, abriu a
porta do seu armário e, a custo, retirou a grande mala de cabedal que era só
sua. Fizera tantas viagens, essa mala, vira o mundo quando ainda podia ir ver o
mundo. Viagens a dois, depois a três, até serem seis, e depois cada vez menos
até ser só ela. Só ela e a sua mala. Dobrou com cuidado as suas peças
favoritas, algumas com vinte anos, mais. Boas peças que nunca estavam fora de
moda. Acondicionou-as com amor, bem alisadas, encheu a mala com as suas
pequenas coisas, um frasco de perfume, um molho de fotografias. Pousou-a à
porta, para o Amanhã.
Depois deitou-se na cama. Na sua cama onde há muito já dormia só. Contou
devagar, porque se perdia na contagem, o que lhe sobrava no grande frasco que
guardava na mesa de cabeceira. Verteu água do seu jarro para o seu copo. Um a
um, engoliu-os com pequenos goles de água, controlando com dificuldade as mãos.
Tremiam, mas não de medo. Tremiam porque tremiam sempre, há anos que lhe
tremiam as mãos. Recostou-se, satisfeita. Deixou deslizar os olhos pelas
paredes cheias de memória. Eles podiam ficar com a sua mala, que a levassem, Amanhã.
E com a sua casa de uma vida inteira. Eles, os seus filhos. Podiam ficar com o
serviço de porcelana e as pratas e os ratos da cave. Com as ervas daninhas e os
gladíolos que com tanto desvelo plantara. Até podiam ficar com o seu corpo,
fazer dele o que quisessem. Ficar com tudo até ela não ter nada que fosse seu. Mas
não podiam ficar com a sua vontade. Essa era sua. Não teria mais nada, Amanhã.
Sorriu e fechou os olhos.
5 comentários:
Gostei! Muito!
É a primeira vez que leio algo seu, mas gostei da forma como escreve e do conteúdo! Este tocou-me muito... mas é isso que um escritor faz, o seu objectivo, não é? Tocar-nos bem fundo!
Só me fez ficar ainda mais em pulgas para ler o "Alma rebelde"!
Muito obrigada!
Não é para agradecer, Carla!
Só disse o que senti... Continue!
Quem me dera não me ter perdido algures na vida e conseguir escrever tão bem...
E fico feliz por poder provar pelo menos a mim própria que temos escritores tão bons em Portugal, mesmo os mais recentes, como a Carla, a Célia...
Olá Carlinha,
Começo por dizer que adoro contos. Este teu, empolgou-me.
Prendeu-me desde a primeira linha e,curiosa, não saltei uma palavra até ao inesperado final.
Quando um pequeno texto nos emociona é porque está bem escrito.
Continua, Carlinha.
Bjs.
Também gostei, mas preferi a reconciliação da velhice no outro conto
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