Eu
era o único testemunho da existência do vermelho em casa de
outra cor. Sorri. Que engano! Mas devia realmente embaraçar o avô. Não que fosse uma criança
irreverente mas, mesmo na minha reserva silenciosa, era um jovem dos anos 80.
E, embora a ideologia comunista, que a alma salazarista do avô repudiava com
tanta determinação, trouxesse ecos do Leste, o avô detestava as modas que vinham
de Inglaterra e dos USA, a que nós aderíamos com vontade: o rock, as calças de ganga, a televisão.
Dizia que corrompiam a moral, e olhava para mim pelo canto do olho. Devia
querer dizer que eu não tinha moral, embora eu não fosse nem comunista nem coisa nenhuma.
O que queria era ver o Conan,
recordei. Usar jeans como o Rui do
prédio ao lado e, mais tarde, ter um walkman
para ouvir, em cassete, os Kiss, os Queen e os outros. Mas era uma luta. Em casa, havia o discurso diário da
perdição. Aos dez anos não entendia, aos quinze enfurecia-me mas, em silêncio, sem protestos nem concordância, obedecia.
Na
escola, claro, eu e os outros, uma geração inteira, recebiamos com ou sem
permissão paterna uma realidade em língua inglesa, filtrada em telediscos e
filmes americanos. Era a nossa versão da liberdade? Nenhum de nós saberia
dizê-lo, nem queríamos saber. Quando nos tornámos conscientes de nós próprios,
a liberdade já era um dado adquirido. Para mim, berrar os versos do Highway to Hell o mais alto que podia,
sentado no muro atrás da escola, com os outros, representava um prazer simples,
não pensava na presença opressiva do avô nem na inexplicável sombra que era a
avó.
1 comentário:
A nostalgia dos anos 80 parece-me um bom tema. Almejar possuir um walkman e berrar o Highway to Hell - bem visto ;) E que saudades...
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