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sexta-feira, 30 de março de 2012

meia dúzia de palavras...

... um excerto de um novo livro que, quem sabe, talvez um dia também veja a luz do dia. 



Eu era o único testemunho da existência do vermelho em casa de outra cor. Sorri. Que engano! Mas devia realmente embaraçar o avô. Não que fosse uma criança irreverente mas, mesmo na minha reserva silenciosa, era um jovem dos anos 80. E, embora a ideologia comunista, que a alma salazarista do avô repudiava com tanta determinação, trouxesse ecos do Leste, o avô detestava as modas que vinham de Inglaterra e dos USA, a que nós aderíamos com vontade: o rock, as calças de ganga, a televisão. Dizia que corrompiam a moral, e olhava para mim pelo canto do olho. Devia querer dizer que eu não tinha moral, embora eu não fosse nem comunista nem coisa nenhuma.
O que queria era ver o Conan, recordei. Usar jeans como o Rui do prédio ao lado e, mais tarde, ter um walkman para ouvir, em cassete, os Kiss, os Queen e os outros. Mas era uma luta. Em casa, havia o discurso diário da perdição. Aos dez anos não entendia, aos quinze enfurecia-me mas, em silêncio, sem protestos nem concordância, obedecia. 
Na escola, claro, eu e os outros, uma geração inteira, recebiamos com ou sem permissão paterna uma realidade em língua inglesa, filtrada em telediscos e filmes americanos. Era a nossa versão da liberdade? Nenhum de nós saberia dizê-lo, nem queríamos saber. Quando nos tornámos conscientes de nós próprios, a liberdade já era um dado adquirido. Para mim, berrar os versos do Highway to Hell o mais alto que podia, sentado no muro atrás da escola, com os outros, representava um prazer simples, não pensava na presença opressiva do avô nem na inexplicável sombra que era a avó.

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

A nostalgia dos anos 80 parece-me um bom tema. Almejar possuir um walkman e berrar o Highway to Hell - bem visto ;) E que saudades...