Páginas

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A Centelha da Vida, de Eric-Maria Remarque, ou a impossível teimosia da esperança

Se decidir ler este livro de 1952, respire primeiro, respire fundo antes de mergulhar, porque ao longo das 469 páginas (na minha versão) vai ser difícil levar ar aos pulmões.

Há já algum tempo que queria ler A Oeste Nada de Novo, culpa da Cristina Drios e do seu excelente Os Olhos de Tirésias, mas não me decidi a comprá-lo. Nas férias, porém, costumo sempre espreitar a estante da casa de aldeia dos meus pais, onde a minha mãe armazenou uma série de livros fantásticos da sua juventude, John Steinbeck, Norman Mailler, Remarque, outros. Foi dessa estante que li há anos, a cair de podre, o meu favorito A Leste do Paraíso, e foi lá que descobri, também a cair de podre, este A Centelha da Vida, que de imediato passou à frente de todas as minhas intenções de leitura. Primeiro precisei, com fita cola e paciência, de repará-lo o suficiente para as páginas de 1963 (é mais velho do que eu, respeitinho) não me ficarem nas mãos!

Pensamos sempre, volvidos quase 70 anos sobre o fim da Segunda Grande Guerra, que sabemos tudo sobre os horrores nela cometidos. E não é inteiramente mentira - sabemos dos campos de concentração e de extermínio, já vimos as fotos , já acompanhamos as séries de ficção e os documentários, já lemos muitos livros. Saber, porém, não diminui o horror. Por isso previno, é preciso respirar fundo antes destas páginas. Muito fundo. O autor, que é alemão e a prova de que ser alemão não é, nem era na época, ser nazi, previne no início que esta é uma obra de ficção. O campo de trabalho de Mellen (não de extermínio, este não tem câmaras de gás) nunca existiu, nem as personagens. Todavia, afirma, tudo o que consta do livro aconteceu, algures, nalgum campo, tudo foi recolhido de testemunhos reais. E isso é que é terrível, e isso é que nós já sabíamos mas preferíamos não saber. 

Cada página deste livro passado mesmo no final da guerra, na Primavera de 1945, é de um perfeito horror. Decorre num campo de trabalho dividido em dois, do qual acompanhamos o sector dos "esqueletos", os que estão para além da capacidade de trabalho, colocados no campo pequeno para "rebentar"(não preciso de esclarecer o que representa), doentes com tifo, desinteria ou simplesmente demasiado fracos. O que lemos está muito além e acima daquilo que parece possível suportar, descrito sem pudor nem comiseração mas com um tremendo respeito pela vida humana, pela resiliência do homem em situações extremas, para além de extremas, por essa espécie de integridade que leva os homens a unirem-se quando tudo faz prever que seja cada um por si na luta pela sobrevivência. Não fazem falta lenços de papel, não é esse tipo de livro, o tom não é lamentoso nem de uma emotividade barata. É duro e é simples, como se os horrores da vida no campo fossem tão naturais como os pequenos acontecimentos da vida numa aldeia. Esse é, talvez, o aspecto mais impressionante - como o homem é capaz de adaptar-se para sobreviver. E de como o medo e a esperança andam lado a lado, tão capazes de tolher como de empurrar.

Desta leitura, apesar de terrível...terrível, ficam no fim as impressões de resistência e esperança. De calor humano, de amizade, de uma certa pureza. Atravessa todo o texto essa centelha da vida de que fala o título, na capacidade para simplesmente resistir antes de se prever a chegada dos Aliados, numa esperança atemorizadora depois de se perceber que está para breve o fim. Li com paixão, apesar de ter demorado um pouco - por vezes, já não era capaz de absorver mais horror. 

Duas notas.

  1. Há um ponto, para o fim do livro, meia dúzia de páginas com duas ou três conversas um pouco mais políticas e dogmáticas, sobre o que se previa do domínio comunista no fim da guerra. Não roubaram nada ao livro e seriamdecerto importantes no ano de 1952, quando o tema era "quente". De qualquer forma, é engraçado confirmar, tantos anos depois, o que o autor prevê no livro...
  2. Foi muito curioso ler esta versão de 1963, nesta fase em que tanto custa a engolir o Acordo. Era um pouco diferente, o português, os advérbios acabados em "mente", por exemplo, levavam acento. Também notei que a edição não é muito cuidada... mas foi irrelevante!

Sem comentários: