Páginas

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

A gota


 
Os três homens agachados não conseguiam tirar os olhos da gota que, gorda e e brilhante, pendia da extremidade rocha e ameaçava tombar a qualquer momento, como fazem as gotas de orvalho quando acabam de correr pelas superfícies, a caminho do solo.    
- Deviamos ir buscar o frasco.
- Vai, então.
- Vai tu.
Nenhum se mexeu. A brisa quente da madrugada soprou-lhes nas costas. Moveram-se uma fracção para, com os corpo, protegerem a gota. Um sopro apenas podia fazê-la tombar, roubar-lhes a visão dourada.
- É minha.
- Não é de ninguém.
O primeiro rosnou. Era sua. Tinha sido o primeiro a chegar, os pés queimando na areia gelada, a pele curtida do rosto ardendo no frio da manhã. Daí a pouco arderia ao sol abrasador que secaria a gota, se não caísse primeiro no solo. O solo sequioso engoli-la-ia, e nem vestígio restaria do seu esplendor.
- Minha. - bateu com as mãos no peito.
- E minha. - o terceiro imitou-o. O do meio sacudiu a cabeça.
- O frasco. - disse.
O frasco. Vestígio de outro tempo em que havia muitos frascos e garrafas e as outras coisas que o sacerdote lhes contava, como casas que nasciam do chão e estradas que o cruzavam, e chuveiros de onde brotavam centenas, milhares de gotas como esta. O frasco recolheria a rara humidade, podiam enterrá-lo fundo no chão de uma gruta fresca e isolada. Se encontrassem depressa uma onde não vivesse ninguém. Um templo para a sua gota. 
A rapariga aproximou-se, esguia e desgrenhada, crestada do sol e bela. Encostou-se à pedra e espreitou. Eles olharam. Era bonita. Mas não brilhava ao sol. Ignoraram-na.
- Daqui a nada desaparece. - disse ela - Ou cai ou seca. Aqui tudo seca.
- Cala-te. - disparou um.
- Sim, e vai-te embora. É minha.
Ela encolheu os ombros mas não se mexeu.
- E para que a queres? Não te tira a sede. 
Estremeceram. Sede. Tinham sempre sede, e ainda mais fome.
- É bonita. Mais bonita do que tu. - disse o outro.
Ela riu-se.
- Sim, claro. Mas só dura um instante. Vejam.
Apontou. A gota tremia na extremidade da rocha, a qualquer momento precipitar-se-ia da altura. Um estendeu a mão, no esforço desesperado para apanhá-la. O segundo rugiu ‘minha’ e atirou-se a ele. Rebolaram os três, enquanto a rapariga olhava e ria, e sacudia a cabeça.
- Hei! Idiotas!
Levantaram as cabeças, os lábios arreganhados de raiva, sangue uns dos outros nos dentes. Na ponta de um dedo fino, a gota brilhava.
- É minha agora.
Separou os lábios gretados e meteu o dedo na boca.
- Hummm. Doce.
Soltou outra gargalhada e voltou-lhes as costas. Eles entreolharam-se. Olharam para o menear das ancas, para as pernas nuas. Viram o olhar que lhes deitou, sobranceiro, a boca carnuda e seca. Seca não. A boca que engolira a sua gota dourada e bela.
- Minha. - rugiu o primeiro, levantando-se de um salto.
O segundo agarrou-lhe um tornozelo, fê-lo tombar. Rebolaram os três, todos unhas e  dentes e rosnados ferozes, enquanto ela se afastava, rindo sempre.

 

Sem comentários: