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sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

revisto pela matina

Um bocadinho de escrita (vá, de revisão) matinal... O que me custa abandoná-la agora pelo meu ganha-pão!

Fica o testemunho...


Ela própria… a sua juventude no Alentejo parecia tão distante que mal se recordava do que fazia. Parecia-lhe que não fazia nada, mas não podia ser, pois não? Longos dias de vazio gelado, no Inverno, ardente, no Verão. As suas recordações eram quase todas de estar sentada a ler, e depois de Lisboa, onde ganhara nova vida. Saía todas as manhãs para a Faculdade, estudava muito e com gosto, passeava um pouco com Marília e Idália, ia comer gelados e lanchar, passear aos Jerónimos e na Baixa, de quando em quando metiam-se no comboio para ir ao Estoril, à praia. Mas para que lhes ia falar de passeios e da praia, a elas, que tinham ali mesmo o deserto e as Hortas e uma longa avenida na praia das Miragens, que frequentavam amiúde? E outras, segundo Alberto, à distância de um sopro, de automóvel, ainda mais belas?
- Gosto muito da Marginal, é bonita, – Tinha na voz a falsa segurança de quem finge que tem algo para oferecer. – e as Avenidas também, a da República e a da Liberdade... E Belém. Gosto muito.
- Lisboa é muito bela. Muito diferente da nossa cidadezinha, que é insignificante. – concordou Laurinda. – Com tanto para descobrir!

Brígida lembrou-se das escadarias e ruelas de Alfama e da Mouraria, onde os pais não sabiam que andara, mas não sabia como explicar-lhes sobre o encanto do sol a forçar os seus raios nos becos esconsos, sobre as flores nas sacadas das pequenas janelas, a roupa lavada suspensa nos andares de cima quase a tocar as janelas das vizinhas, numa troca de informações privadas que não guardava intimidades. Divertira-a que cada um soubesse o que usavam os outros por dentro, quando todos os assuntos do corpo eram cuidadosamente calados. Nem sabia explicar-lhes a estranheza e o encanto da batalha do cheiro dos refogados e do sabão da roupa contra o odor fétido das muitas sujidades que corriam livremente pelas calçadas, ou como lhe agradava o ardor nos músculos, de subir as escadas e trepar as ruas, ou, pelo contrário, de conter o passo para não escorregar à descida…

(do provisório O Coração Quente da Terra)

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