Páginas

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Uma Outra Voz, Gabriela Ruivo

Têm sido tão raras as opiniões literárias por aqui, que até temo já nem saber escrevê-las. Vamos a isto.

Este livro, que foi prémio Leya em 2013, constrói uma ficção de arraiais assentes no Alentejo (é um livro "alentejano", sem dúvida, e isso é bom), a partir, segundo percebi, da personagem real João Francisco Carreço Simões, que foi importante no desenvolvimento da cidade de Estremoz até meados do século XX. 

Aqui, JFCS transmuta-se na figura de João José Mariano Serrão, que conhecemos essencialmente pelo olhar dos que o rodeiam, uma vez que o testemunho do próprio é escasso e surge apenas no final do livro. Conhecemo-lo, pois, através de cinco outras vozes, que andam para trás e para diante ao jeito das recordações. Ou melhor, cada voz avança dentro da sua época, mas andamos, por vezes, "às arrecuas" de uma para outra voz. No fim, conseguimos uma imagem do homem, mas, tendo lido o livro aos poucos (levei, segundo o GoodReads, um mês inteiro), concluo que conhecer o homem não é o mais importante. Aquilo que marca é a família, a cidade, o Alentejo, certos momentos na História da cidade e do país, que são abordados de forma lateral, mas, para mim, que os aprecio, são relevantes. 

Temos vozes femininas e masculinas e cada voz se apresenta com uma natureza própria, num momento diferente e com coisas distintas para contar, que não parecem, num primeiro momento, contribuir de forma clara para uma história global. Aos poucos, porém, os fios vão-se entrelaçando e distinguimos a relação entre narrações, descobrimos segredos que vão ficando de umas para outras (que não são difícies, a partir de certo ponto, de adivinhar, ou talvez seja culpa minha e do meu desconfiómetro). O livro conquistou-me logo na primeira voz, à página 25, que é, na prática, a terceira página da história, com uma descrição de uma brincadeira de miúdos, pela voz de um rapazola de quinze anos. Brincadeira de médicos, como todos tivemos, envolvendo a simulação de injecções:

Depois era a minha vez de levar a injecção, mas ela [a irmã] era uma médica bem mais cruel do que eu: não se contentando em esborrachar o gargalo de vidro contra a minha nádega, espetava também a unha do indicador com tanta determinação que, não raro, me arrancava gemidos de dor. Entretanto, já eu estava a tentar puxar as cuecas para cima, desinteressava-se do meu rabo e metia-me a mão entre as pernas à procura da lombriga. Era assim que ela dizia, lombriga, e eu sentia a faces escaldar e tentava em vão proteger-me das investidas daqueles dedos que tudo faziam para me apertar as bolas.


Não apreciei todas as vozes por igual, embora as tenha apreciado muito quase todas, pelas diferenças de tom e de conteúdo. A única que me fez passar algumas páginas foi a terceira, por uma questão de gosto pessoal. Não me seduzem as vozes que clamam pela morte, que se rodeiam de desgraça - ainda que, neste caso, seja compreensível e que a parte da história narrada por ela, a voz masculina, seja interessante. Pareceu-me também a mais distante do núcleo central da história, até no tempo, e a que menos acrescenta ao seu panorama geral. A voz da prostituta, a última, é, ao contrário, provavelmente a mais relevante na construção da personagem que motiva o livro... e é deliciosa.

Tinha alguma intenção de passar as páginas do diário no fim do livro - tive vários diários em miúda, mas a diarística tende a aborrecer-me - mas acabei por não o fazer. Ainda bem. Estas páginas decorrem em Angola, onde nasci, e reforçam a imagem que tenho recebido dela por via interposta, uma vez que eu própria não tenho recordações. É a que tenho vindo a transpôr, aos soluços, para um livro que pdoe levar uma ou duas eternidades a terminar... Esta parte do livro tem, também, uma das expressões de amor mais bonitas que tenho lido:

Se tu fosses uma árvore, meu amor, serias um embondeiro. Grande, sólida, resistente, e subitamente transbordante de flores puras como aves, e de frutos que escondessem toda a frescura de uma noite sem lua. 

Uma leitura, sem dúvida, muito interessante.

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

De quatro Prémios LeYa que li foi do que gostei mais.