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domingo, 27 de dezembro de 2015

rios estreitos na vidraça

Parece que este ano não consigo manter-me fiel a um texto - começá-lo, acabá-lo, revê-lo e dá-lo por concluído . Tinha esperança nestas pequenas férias, mas parece que ando ao sabor de um vento que não entendo, de um trabalho para outro. 

Hoje acordei com vontade de mexer no meu mais incompleto e provavelmente mais necessitado de muito trabalho, aquele que me vai ser sempre duro. É, por ora, O Coração Quente da Terra,. Fica um bocadinho.


Pareceu-lhe que conhecia os dois homens que acabavam de entrar, mas o seu olhar não se deteve neles. A água da chuva deslizava nas portas de entrada. Abriram-se outra vez, para deixar entrar uma mulher idosa de gola de pelo, acompanhada de um homem ainda mais velho apoiado num andarilho, um cadáver por antecipação, a pele muito pálida e seca pendendo qui, esticada ali sobre ossos agudos. Seriam realmente assim tão brancos, os mortos? Rodrigo estaria assim, exangue e murcho? Na televisão, os mortos tinham uma tonalidade acinzentada, como o dia lá fora… o dia estaria morto? Arrepiou-se, meio ciente apenas do movimento na sua direção. A porta fechou‑se e o casal desapareceu devagar num corredor à esquerda. Ficou a ver os rios estreitos na vidraça.
- Está a chover. – soprou – Está sempre a chover.
- Mena? Estás bem?
Reconheceu vagamente a voz do irmão mais velho, identificou pelo cheiro o abraço de urso em que a envolveu. Era tão alto, o seu irmão. Às vezes maior do que o mundo. Noutras... O que fazia ali nessa manhã de chuva? Ouviu um soluço, um gemido.
- Estás a chorar, Filipe? – A voz embrulhou-se-lhe na garganta e percebeu, de repente, que o soluço tinha nascido dentro dela. Estremeceu quando o seu cérebro alcançou de repente o que o corpo já compreendera. As pernas cederam e ficou suspensa do abraço do irmão.
- Mena?
Filipe obrigou-a a sentar-se. Filomena levou os dedos ao rosto, à espera de senti-lo molhado. Não, lá fora é que chovia. Ela estava seca. Os braços da mãe voltaram a rodeá-la, uma grilheta sufocante que não se atreveu a sacudir. Fechou os olhos e desejou a escuridão da inconsciência, mas não veio. As coisas nunca vinham quando ela queria, apanhavam-na sempre de surpresa. Como Rodrigo a apanhara de surpresa quando ela se preparava para partir para uma vida noutro país e a segurara ali, refém da paixão e de um futuro juntos. E como Miguel a apanhara de surpresa, a crescer dentro dela quando se julgava prevenida contra outro desses amores eternos. Como o toque do telemóvel, no momento em que fechava a porta de casa dos pais, para deixar o Miguel antes de ir trabalhar, a avisar que Rodrigo caíra da mota na autoestrada e fora levado para o Santa Maria.

Como ali, na boca do médico. Morto.
E agora? Que faria agora com o seu amor indesejado? Que faria com o filho sem pai? Sentiu a ferida da luz através das pálpebras. De nada lhe serviu cerrá-las com mais força, a luminosidade era uma lança dolorosa. De onde vinha? Abriu os olhos. Havia uma janela mesmo à sua frente, do outro lado do corredor, de onde se viam as nuvens como rolos de chumbo no céu. Notou, com perplexidade, que a chuva batia nela com violência e a luz era, afinal, tão pouca. Estava a chover? Há quanto tempo? Há anos. Há anos que chovia na sua vida.


Desejem-me sorte para continuar isto...

1 comentário:

Cristina Torrão disse...

Força!
Também ando numa fase saltitante...

Feliz 2016!