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sábado, 14 de novembro de 2015

Da bravura das mulheres - As Sufragistas

Terminado o post, apercebo-me de que é longuíssimo... e menos de metade é sobre o filme. Não faz mal, lerão aquilo que quiserem. 

AS SUFRAGISTAS desenha um retrato parcial das dificuldades das mulheres no início do século XX e a extensão daquilo a que algumas se dispuseram para reclamar os direitos que temos, no Ocidente, como adquiridos, mas talvez fizesse mais sentido chamar-lhe A SUFRAGISTA, no singular, porque criaria expectativas mais conformes ao que entrega. Na verdade, não conhecemos as vidas das diferentes sufragistas, nem a globalidade do movimento sufragista representado por Emmeline Pankhurst (uma aparição tão breve de Meryl Street que nem devia constar do cartaz) e outras, ou a sua história. Quase nada se diz da própria Pankhurst, ainda que o nome seja omnipresente: quem era? o que fez? como ascendeu à sua posição e, principalmente, o que sacrificou? A visão dos acontecimentos históricos chega-nos através do olhar de Maud, mulher e mãe do West End londrino, pobre, nascida e criada na lavandaria onde trabalha, que vai envolver-se no movimento sufragista que Edith Ellys (inspirada, segundo as minhas pesquisas, na militante Edith Garrud) lidera com grande dedicação e a surpreendente ajuda do marido. É precisamente este centrar quase intimista na personagem que constitui a maior força e fraqueza do filme.   

Este seria um péssimo filme se não nos trouxesse, para além do movimento sufragista, um vislumbre das condições de vida da vastíssima camada da população carenciada no início do século XX em Inglaterra. Não temos, infelizmente, senão uma brevíssima perspectiva do que viviam as mulheres das classes privilegiadas que, como as outras, estavam inteiramente sujeitas à boa-vontade de maridos, pais, irmãos, tios, primos ou qualquer outro membro da família com um apêndice entre as pernas. que detinham  poder absoluto de decisão em todos os aspectos da vida feminina, incluindo a maternidade - as mães não tinham nenhum direito sobre os filhos. Não é difícil de imaginar porque é que a generalidade  se opunha ao voto feminino, o primeiro passo num caminho de independência que as levaria a reclamar outros direitos, económicos, sociais, familiares. Gostaria de ter visto um pouco mais, todavia, da perspectiva masculina, por exemplo, da posição pessoal dos responsáveis políticos - pensariam todos da mesma forma? Reconheceriam a razoabilidade das pretensões, mesmo sem estarem dispostos a ceder? E a posição das mulheres que se opunham ao voto?É difícil de conceber que acontecesse, não é? Mas acontecia, como transparece de forma muito ténue no filme, nas lavadeiras e vizinham que viram a cara a Maud. Gostaria de tê-la visto na voz de mulheres que, como as sufragistas, mostrassem os seus argumentos...


O que é fraqueza é, nesta caso, também força. Ver o movimento de forma parcial e concentrada, avançando para um acontecimento fundamental - um funeral que reuniu milhares de mulheres e foi falado no mundo inteiro - através do progresso e da vida pessoal de Maud, confere ao filme o poder de nos tocar, graças também à capacidade da actriz para imprimir enorme tensão ao papel. As suas dúvidas e dificuldades fazem-se nossas, e não creio que seja preciso ser mulher para ficar emocionada(o) e revoltada(o) com a sua situação e de outras mulheres à sua volta, com a sua impotência perante a lei e as atitudes dos homens. algumas das quais nos repugnam... não posso deixar de pensar no marido, que, sendo sempre um homem doce, sem nunca bater ou insultar, sem nunca a tratar mal, comete as maiores atrocidades, ao abrigo da lei. É impossível não nos comovermos com a coragem destas mulheres dispostas a perder o pouco que têm, trabalho, casa, família, liberdade (bom... estão dispostas a ser presas e torturadas) e até a vida por um ideal justíssimo. 

Assisti a todo o filme com o coração apertado e a angustia a admiração ainda não me abandonaram. Embora tenha estudado as questões sufragistas e conheça bastante bem a época, não tinha a noção exacta, nem dos  actos  mais extremos a que se dispuseram estas mulheres, nem das consequências, os espancamentos nas manifestações, a enorme frequência das prisões e as greves de fome. Agora tenho, e de uma forma pessoal, porque este filme nada tem de documentário. É um testemunho histórico, sim, imperfeito mas fascinante, e o que ali se passa poderá ser extrapolado, em maior ou menor grau, para outros países ocidentais na mesma época, mas é também uma história emotiva. Confesso que me abalou e, quando cheguei a casa - hoje ainda - continuava abalada.

E sim, sei que a minha opinião é incompleta, ela própria imperfeita, e que não consigo ser imparcial... mas não preciso de sê-lo, neste meu monstro. O tema é um dos que mais me agita - sou uma feminista, já o tenho dito - e porque não? Daqui para a frente, pode parar de ler quem só quer saber sobre o filme.

***

Sim, sou, desde sempre, feminista assumida e isso transparece em todos os meus livros - creio que até nos meus livros de fantasia. Não sei, aliás, como pode uma mulher não ser feminista, quando sê-lo significa reclamar os mesmos direitos e os mesmos deveres dos homens. Os deveres, já os assumimos quase todos: as mulheres trabalham lado a lado com os homens, pagam contas, põem gasolina, montam móveis e mudam lâmpadas. E vão à guerra, embora não consiga decidir se isso é direito, dever ou uma enorme estupidez de ambos os sexos. É, porém, inteiramente ilusório assumir que há igualdade. 

Falo em primeiro lugar da igualdade que dita as mesmas oportunidades. As mulheres são a maioria nas escolas e universidades e estão em proporções iguais no mundo do trabalho - mas não auferem salários iguais, são as primeiras a perder o emprego, não têm o mesmo direito ao reconhecimento e a aceder aos lugares de topo, a que anularia o tecto de vidro em que parecem embater as mulheres, tolhidas pelo preconceito ou pela necessidade de assistir à família, que, por alguma estranha razão, se assume que lhes cabe a elas. Tanto quanto sei, fazer a família coube a ambos, com alguma sorte com muito prazer para os dois. Carregá-la, porém, cabe à mulher, mesmo depois do fim da amamentação. (curiosamente, a propósito disto acabei de ler ESTE estudo, já depois do post escrito) 

Falo também da pequena igualdade, a que mal se nota, a não ser dentro de portas. Nada tem de pequena, por se imiscuir nas rotinas de um dia a dia que, para muitas mulheres, se torna excessivamente pesado. Esta igualdade é a que diz que as tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, o direito à diversão e ao descanso devem ser, como as despesas da casa, partilhadas. Na generalidade, não são - com honrosas e muito sedutoras excepções... Infelizmente, as perguntas "O que é o jantar?" e "Há cuecas limpas?" continuam, na maioria dos casos, a ser antecedidas da palavra "mãe" ou de um qualquer nome de mulher, mesmo nas casas onde os homens ajudam. O próprio verbo ajudar é pernicioso, por implicar um responsável e um que dá uma mãozinha, numa circunstância em que devia reinar a partilha: onde ambos trabalham fora de casa, o peso do desagradável e cansativo trabalho doméstico devia ser igual, tal como outros aspectos, relacionados com a responsabilidade sobre os filhos - ah, a desgraçada da mãe, essa eterna chata que vai à escola falar com o professor e que obriga a estudar e a fazer os TPCs!! É a mesma desgraçada que fica velha e enrugada e gorda, enquanto a barriga de cerveja e a careca não têm, aos olhos dos homens, não têm qualquer relevância! Enfim. 


Há muito trabalho a fazer ainda e este cabe às mães e pais, ensinando os filhos e as filhas que homens e mulheres não são iguais, mas tem exactamente o mesmo direito ao sucesso e ao descanso, e o mesmo dever de ser profissionais no trabalho e de trabalhar em casa. Em partes iguais, porque as mulheres não têm o gene do apreço pelo trabalho doméstico ou do amor pelos lugares de baixo da escada profissional... ou seja, as mulheres não nascem com o gene da subserviência. Como fazê-lo, porém, se o exemplo ensina e na maior parte das casas os filhos ainda é a mãe que recorrem para um par de meias? 

Podia alongar-me muito, muito mais, mesmo sem contemplar as culturas em que as mulheres (ainda) valem menos que os animais da casa... e regressaria ao filme. Não sou capaz, não quero mesmo fazê-lo hoje, sobretudo hoje, após os ataques terroristas em Paris, e vieram foi ler sobre o  filme, não é verdade? Adiante.
   

4 comentários:

Tita disse...

Olá Carla
Assim que vi o trailer do filme que fiquei curiosa e agora a tua opinião ainda me deu mais vontade de ver o filme. Tenho mesmo que ver!
Adorei o teu post! Todo!
Beijinhos

Cristina Torrão disse...

Muito bem, Carla, também adorei!

Só uma pequena correção. Na frase: «sem contemplar as culturas em que as mulheres (ainda) valem menos que os animais da casa» - eu acrescentava o "ainda", que pus entre parênteses, porque também na nossa cultura era assim. Nalgumas regiões, há bem pouco tempo, o meu pai, originário de uma aldeia transmontana, ainda se lembra de ser assim (40, 50 anos ou 60 anos é pouco tempo na História da Humanidade).

Beijinho :)

Carla M. Soares disse...

Tita, o filme vale a pena.

Concordo plenamente, Cristina. Acrescentei.

Zeca disse...

Adorei este post.
Só gostava de acrescentar a tudo isso que infelizmente muitas mulheres não tem consciência de que somos iguais aos homens e tratam-nos de forma especial fazendo com que eles tenham esses direitos a mais.
Muitas vezes "reclamamos" com os homens por eles serem assim. Mas não nos esqueçamos que foram educados por mulheres. E nós somos muito conforme a educação que nos foi dada.

Parabéns pela mensagem transmitida! ;)