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domingo, 25 de outubro de 2015

O escritor e aquela mulher

Mesmo que houvesse coisas que pudesse dizer-lhe, não sabia se lhas diria. Não era obrigação do escritor guardar as palavras profundas para as páginas a escrever? Não as desbaratar, não as usar à toa em situações passageiras. 

O amor era coisa de um momento. Paixão, olhar, coxas, sexo. Depois do sexo pouco ficava. Nada que ele quisesse, pelo menos. Ficava repetição dos ponteiros do relógio. A impaciência dos ponteiros do relógio. A mulher a querer trocar palavras e ele a querer poupá-las, a ofensa de um silêncio que não era contra ela, mas se erguia contra ela até a empurrar porta fora. Estava bem assim, ganhavam ambos. Ganhava ele, isso era certo. 

E de repente, esta não. Esta sim, paixão, olhar, coxas, sexo, e ainda não fora capaz de gastar palavras com ela, ainda não, mas elas estavam debaixo da língua "Vens outra vez? Quero que venhas outra vez." Algumas mulheres eram desejáveis duas vezes, três vezes, mais. Já vestida, ela ainda lhe sorriu. Rabiscou um número num papel, a provar que voltaria, se ele quisesse, pequenina e elegante. Viria descompôr-se na sua cama, no seu sofá, sem esperar nada dele. Ele talvez esperasse coisas dela. Da próxima vez talvez lhe oferecesse uma bebida, ou jantar. 

Chegou-se à janela, de camisa aberta, a ver a tarde a morrer enquanto ela se alinhava à pressa no espelho da entrada, abria e fechava a porta, saía para a rua . Viu-a caminhar pelo passeio, sustendo-se nos saltos finos sobre as pedras traiçoeiras, mais adiante o automóvel deu sinal da abertura de portas, ela voltou-se um instante e acenou. Respondeu. Foi sacudido por um arrepio, podia ser da brisa ligeira e, metendo-se para dentro, já não a viu desaparecer na esquina e misturar-se no trânsito da rua principal.  

Sentou-se à secretária, ligou o computador e abandonou-se à lassidão satisfeita do pós-coito. Estava cheio de palavras soltas na cabeça, mas não lhe chegavam às pontas dos dedos.

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