Páginas

sábado, 4 de julho de 2015

O escritor no café do bairro

No café do bairro pode-se fumar. O escritor, que não fuma, prefere essa liberdade que lhe lembra outros tempos e é ali que vai, todas as manhãs, beber a bica e ler A Bola, antes de ir sentar-se à sua secretária perpendicular à janela, de onde mesmo assim lhe vê a porta. 

Há anos que o faz. Conhecem-no pelo nome e sabem o que faz. O dono tira a bica antes de lha pedir, põe-lhe o jornal na mesa sem lho pedir e traz à conversa o Benfica assim que o vê pegar nele. O escritor não gosta particularmente de futebol e nem sequer é Benfiquista, lê para lhe ocupar os momentos e poupá-lo às conversas. Com o jornal não consegue, claro, o dono do café tem sempre muito a dizer. Às vezes traz um livro, o que é um pouco mais eficaz a isolá-lo. Um olhar perdido ou uma cara de louco também resultariam, mas o escritor não sabe como isso se faz nem quer para si essa fama. O escritor louco é coisa de outra era. 

Atira um bom dia assim que entra e há sempre uma resposta, duas, às vezes mais. Acham-no simpático, tanto que nessa manhã uma velhota que vive uns prédios mais diante, já a cumprimentou à porta de casa, lhe prometeu um saquinho de biscoitos. Que os fazia aos tabuleiros desde a morte do marido há quatro anos, para se ocupar, mas ele sabe que ela os vende e ofereceu-se para comprar. Que não, que não, que era com muito gosto. E bebericou o carioca com um sorrisinho. Deve achar, e com razão, que ele não tem de momento quem o presenteie com um mimo desses. Com mimo nenhum, aliás. E acha-o simpático, para escritor. Muito acessível. Muito normal.

Ele acha-se normal, sim, para fraude. É-o como escritor, claro, mas isso são-no todos, as palavras asseguram-se que nada do que está escrito é realmente o que existe ou o que se pensa ou se sente. A escrita é um meio esvaziador. Quando, por exemplo, o amor chega ao papel, já vai vazio de amor - reduziu-se às palavras que falam do amor. Quando a descrição de uma mulher é lida, a mulher que cresce atrás dos olhos do leitor pode ser loura e baixa, como a primeira, e ter olhos verdes, mas é outra.  Mas não é nisso que ele é fraude, porque nisso não podia ser outra coisa. 

É a pessoa que engana. Que é simpático, que é acessível, que é merecedor de um saquinho de bolachinhas caseiras.  Não é. Ou acha que não é. Não sabe. Cada um vê o que vê, e ele executa todos os gestos da criatura simpática. Sorri e cumprimenta, com o vazio atrás dos cumprimentos. Escuta a conversa sobre bola e responde, sem se interessar. Interessa-se às vezes por outros temas, mas do que gosta é do silêncio. Aceita as bolachas, e vai comê-las, mas não entende porque lhe são oferecidas. Preferia que não fossem, não sabe como agradecer. Não sabe como agradecer o orgulho de servir a bica ao escritor, senhor escritor, como está, para quando um livro novo, quando nem como escritor é muito bom no engano.

Acha que devia deixar de ir ao café do bairro, onde o conhecem, procurar cadeiras novas, gentes mais apressadas. Parece-lhe, porém, que não o fará. Não sabe porquê. Talvez até nisso seja uma fraude e encontre, afinal, algum conforto no desconforto familiar de ter identidade.