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terça-feira, 30 de junho de 2015

O escritor não sabe o que fazer


O escritor recosta-se. As costas do assento são confortáveis, talvez demasiado, e ele suspira e contempla, desconfiado, o branco à sua frente. Quer enchê-lo de linhas escuras, mas hesita. Não sabe onde elas estão.

Não é verdade. O escritor não sabe é o que fazer, se há de escrever as histórias que esperam na sua cabeça, se há de escrever a alma. Não gosta da palavra, mas por ora não tem outra. Acha que devia fazer as duas coisas juntas, mas não lhe apetece. As suas histórias têm demasiada luz, se a deixa cair sobre a alma, luz diurna sobre a escuridão, pensa aqui que precisa de outra imagem menos batida, mas está vazio de palavras nessa manhã. Se calha cair luz sobre a alma, pode obliterá-la ou, pior, deixá-la exposta em todos os seus ângulos agudos, fundas brechas, côncavos e convexos, e ele não está pronto para vê-la assim, em toda a sua resplandecente miséria. Sorri, feroz, desagradado. Não é só a palavra que lhe desagrada, não gosta por ir além da coisa em si. Talvez esteja apenas cansado de conviver diariamente com o que tem por dentro. Poderá divorciar-se de si? Fixa outra vez o branco. Ali pode. Até pode ser temporariamente intrépido.     

Alinha duas ou três palavras. Parece-lhe que se conseguir passar disso, terá aberto uma fenda no dique e outras se seguirão. Não faz ideia se será assim ou não ou que se precipitará nessa manhã. Acha também que devia obrigar-se a escrever, uma hora por dia, duas, mais, mas não tem método. Nunca teve. Duvida de si também por isso.  

Levanta-se para ir buscar um café. Apetecia-lhe um whisky, mas é cedo ainda e ele não quer a imagem do escritor boémio. Nada tem de boémio. Talvez seja por isso que lhe falham as palavras. Talvez um homem comum não tenha nada dentro de si, a não ser histórias brancas e uma alma preta.  E medo, quase sempre. Recosta-se na ombreira da janela aberta sobre um estreito varandim de ferro verde, recortado, a beber o café. Está quente. Do lado de fora, numa das árvores plantadas num círculo de terra no meio dos paralelipípedos do passeio, um pássaro trina a sua excitação. Sente simpatia por ele. Está um belo dia. O escritor pensa que seria feliz se tivesse ao menos um terço desse entusiasmo e irrita-se. Oxalá o bicho fosse cantar para outro lado, é triste que até a passarada se ria dele.

Volta-lhe as costas, vai sentar-se à secretária perpendicular à janela para, segundo lhe disseram, receber a melhor luz. Recosta-se. A cadeira é confortável, talvez demasiado, e ele suspira e contempla o branco à sua frente. Continua desconfiado, mas agora está também irritado. Não pode calar o pássaro nem lhe apetece fechar a janela. Ao branco, quer enchê-lo de linhas escuras, afinal sabe onde elas estão, mas hesita.