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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A fúria tatuada no ferro


Fury, de David Ayer.

Depois de muito desejar e adiar ver este filme, fi-lo finalmente. Tinha lido excelentes críticas e ouvido óptimas opiniões, mas o tempo escasseava e o ânimo também: este não é filme para se ver de alma levezinha, à procura de entretenimento, nem para se levar os filhos pequenos. É violento, como esperava, não apenas na crueza das imagens de guerra, mas também na (não tão) subtil aproximação àquilo que ela faz aos homens.

Fury é o nome do tanque, escrito toscamente a tinta no canhão, como uma dessas tatuagens que se trazem da guerra - Angola, 1970 - a fazer da máquina uma personagem, o sexto (ou sétimo?) elemento desse grupo de relações tensas e intensas que, já no final da guerra, se vê na contingência de avançar sozinho, porque não sobreviveu na região, estamos já na Alemanha, nenhuma outra máquina. Não vou narrar a história, é evidente, nem explicar como acontece acabar Brad Pitt, confesso que o nome da personagem me escapa, ao comando das operações, nem em que sentido progride o rapazinho que deveria ter sido destacado para as comunicações, mas acaba dentro do tanque, nem quem morre ou quem sobrevive, nem que atrocidades se praticam, de parte a parte, desde o primeiro ao último instante do filme.

Impressionou-me a tensão permanente. Não me refiro à tensão inevitável dos acontecimentos - atacar e ser atacado, estar ou não na iminência da morte, sua ou do homem ao lado, matar e ver matar - e da brutalidade da guerra, à qual não somos poupados. Basta a cena inicial para compreender o que nos aguarda. Refiro-me à tensão contida nos corpos, nas expressões, nas vozes, nos gestos, que explodem repentinamente em actos de brutalidade - necessários? inevitáveis? ou não? - ou em expressões incontidas de dor e amor fraternal, sobretudo perante a morte. Nunca estive em cenários bélicos, prefiro pensar que nunca estarei, mas, desta interpretação da guerra, a segunda, de que tanto já conhecemos, ficou-me aqui uma imagem nova, a de como a repetição da violência vai arrancando do homem as camadas de consciência, sensibilidade, respeito, até se reduzir ao seu essencial e mais brutal, a sobrevivência. Imagino que adultos serão as crianças que crescem assim nos nossos dias, que dureza terão as suas almas e o olhar com que contemplam o mundo. Amarga-me a boca que o passado não seja passado afinal, que a lição não esteja aprendia - nunca estará, é assim a natureza insatisfeita do homem.

Uma nota para a adequação dos actores aos papéis, incluindo o muito jovem Logan Lerman, e a forma como nos chegou deles a impressão de uma espécie de loucura crescente, que se comunica através da religiosidade exacerbada ou da brutalidade, mas parece constituir uma âncora de sobrevivência, uma cobertura que permite preservar um núcleo de resiliência e esperança. 

Talvez seja apenas isso a guerra, brutalidade, loucura, resiliência e esperança.  


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