Páginas

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Uma carta de Angola

A Chama ao Vento não é parcialmente feita de cartas e mensagens, como o Alma Rebelde, mas tem, quase no fim, esta missiva muito sentida. 

Angola, 27 de abril de 1974

Minha querida mãe, 

(foto de Fernando Farinha,  em http://olivaria.blogs.sapo.pt/24276.html)
Não sei quantas vezes terei ainda oportunidade de escrever-lhe, mas não queria deixar de mandar uma palavrinha, para que durma mais descansada, sabendo que continuo vivo e que ninguém conseguiu quebrar-me a vontade. Ainda sou eu quem lhe fala, inteiro e vivo. Tranquilize-se, que é assim que quero continuar, para poder um dia voltar a vê-la, e voltar a estar nos braços da minha Sabinne e criar o meu filho. 

A viagem não correu mal, apesar de ter sido demorada. Estivemos muitos dias no mar, mas a corveta é sólida e, felizmente, não apanhámos nenhuma tempestade. Desembarcámos fartos do balanço, a mãe sabe como eu enjoo, e com as pernas bambas, mas vivos. Fomos imediatamente enviados para uma província qualquer a Norte. Desculpe, não sei se posso dizer-lhe onde estou. Prefiro não dizer, receio que a carta não siga, se o fizer. A verdade é que também não sei muito bem que lugar é este. Estou num aquartelamento no mato, que é todo igual, árvores e mais árvores. Aqui perto há uma aldeola, com uma tasca de um português, que nos serve um borrego gorduroso quando lá vamos, com vinho barato, e pouco mais. Mas sabe-nos bem, mãe, é como se estivesse ali um bocadinho de Portugal. Há muitas cubatas, que são as casas dos pretos que cá vivem. Não sei mais nada. Também não vale a pena falar-lhe da minha vida aqui. Não fazemos grande coisa, por enquanto. A maior parte do tempo, comemos e dormimos. De vez em quando, mandam-nos em missão, varrer o mato e as aldeias, à procura de patrulhas deles, e calha lutarmos. Às vezes temos medo, uns dias mais, outros menos, mas não serve de nada. Uns morrem, outros vivem mais um dia. A guerra é a guerra, sobrevivemos ou não. Mas não se preocupe comigo, mãe, sou cuidadoso e a sorte há de estar comigo. 

O que eu quero realmente, minha mãe, é perguntar-lhe como está. Nem sei se esta carta seguirá, quanto mais se uma resposta chegará até aqui mas responda-me na mesma, se puder, quero muito saber de si e do Francisco. Desculpe ter deixado nas suas mãos essa responsabilidade, sabendo que esse homem, o dono dessa casa, não vai dividi-la consigo. Quero que saiba que tanto eu como a Sabinne amamos muito o nosso filho, imagino que ela não tenha tido palavras para dizer-lho. Talvez a mãe pense que ela o abandonou. Não é assim, fui eu quem lhe pediu que saísse de Portugal como pudesse, que fosse construir uma vida na terra onde nasceu. Tem lá família que pode ajudá-la. Um dia, não sei quando, há de vir um telefonema, uma carta, a pedir- lhe que mande o Chico para a Alemanha. E eu espero poder juntar- me a eles um dia, quando esse país e este inferno esta terra já não me amarrarem as pernas. Entretanto faça o que puder. A mãe sabe, o Chico é um pouco teimoso, mas é um bom menino. Sei que a mãe é pouco amiga das palavras, mas ajude-o a compreender. Devia ter passado mais tempo com ele, ter-lhe dito que é uma criança maravilhosa, que o amo muito. Andei tão aflito com tudo enquanto estivemos escondidos, que me esqueci dessas coisas importantes. Não sei se quando terei oportunidade de dizer-lho… diz-lhe a mãe por mim, se eu não puder? A mãe diz-lhe que o pai pensa nele no escuro da noite? Que luta todos os dias para poder voltar para esse país maldito, só por sua causa? Diz-lhe que a mãe não queria ir-se embora, que há de voltar? Diz-lhe que os pais lhe querem bem e vão buscá-lo um dia, muito em breve? Perdoe-me, mãe, se lhe pareço aflito. Não se preocupe comigo, por favor. É que aqui tudo incha com o calor e a humidade, até o senti- mento. Nem eu me reconheço, às vezes. Fique bem, minha mãe, e não se esqueça de mim, que a amo muito também.

Do seu filho, Joaquim




A Chama ao Vento, pág 416-17

Sem comentários: