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terça-feira, 29 de julho de 2014

O Último Cabalista de Lisboa - Richard Zimler

Este é o segundo livro que leio do autor Richard Zimler, tendo o primeiro sido Os Anagramas de Varsóvia, cuja opinião pode ser lida aqui. Por coincidência ou não, ambos os livros narram momentos muito negros para os judeus...

Uma nota, antes de mais, para a capa desta edição, que acho lindíssima.

Num capítulo prévio, espécie de prólogo ou prefácio, o autor narra como se deparou com o manustcrito que se encontra transcrito, ou romanceado, afirma, em O Último Cabalista de Lisboa. Escrito pelo narrador Berequias Zarco em meados de 1500, conta o assassinato do seu tio Abraão Zarco, iluminista de excelência e cabalista, durante os terríveis acontecimentos do massacre dos judeus em Lisboa em 1506, quando Lisboa se encontrava numa situação desesperada, com a peste que grassava  há já algum tempo agravada pela seca e fome. Os judeus, forçados nos últimos 20 anos à conversão, viviam momentos particularmente difíceis, já que quaisquer sinais de judaísmo poderiam levar a denuncias e condenações.Os judeus eram forçados a assumir a máscara de cristãos-novos, alguns procurando renegar a antiga crença, a generalidade mantendo em segredo os costumes e alguns sonhando sair de Lisboa rumo a Constantinopla... Vivia-se com medo, pouca esperança e, para os judeus, nenhuma possibilidade de sair do país. Fiquei intrigada com a ideia destes manuscritos, que tanto poderiam existir de facto, como ser pura invenção do autor. Tudo é possível em ficção - até fingir a realidade. Fiz uma pesquisa rápida que não me levou a lado nenhum, perguntei a quem também já leu o livro e acredita que os manuscritos são reais e pensei em pesquisar mais um pouco, mas embrenhei-me na leitura e deixou de ter importância. Entretanto, já fui avisada por quem ouviu da boca do próprio autor que os manuscritos NÃO são reais. não senhora. Obrigada, Cristina Drios. 

A narrativa está estruturada sobre o assassinato de Abraão Zarco e a investigação do narrador Berequias/Pedro Zarco, seu sobrinho e discípulo na arte da iluminura e da elevação religiosa, que persegue obsessivamente o criminoso ao longo destas páginas, em detrimento do cuidado de si próprio, da família e da comunidade. Tal é a sua ansiedade para encontrar o assassino do tio, que esquece inclusive o seu ensinamento: nunca esqueças os vivos a favor dos mortos. A solução suscitou-me curiosidade, claro, está bem pensada (não revelo mais nada), mas com tanto para absorver ao longo das páginas, sucedeu interessar-me menos por ela do que pelo resto, como aliás já acontecera com Os Anagramas.  O livro não pretende ensinar nada e não é doutrinal, mas, para um leigo como eu, há muito para conhecer sobre o judaísmo e é, aliás, necessária alguma curiosidade para apreciar os aspectos religiosos, mas estes estão, a meu ver,  bem equilibrados na narrativa. Claro que, por conhecer tão mal o judaísmo, houve pormenores que me escaparam - sobre os rituais, por exemplo, nomes, histórias do Velho Testamento, que por acaso até li, há muitos anos - mas nunca me impediram de apreciar a narrativa. Também é preciso estômago para ler sobre o massacre de Lisboa (durante o qual o crime sobre Zarco é cometido), porque Zimler descreve sem pudor o ambiente da cidade de Lisboa, numa presença tão forte que a senti muitas vezes quase como uma personagem. É muito fácil imaginá-la na época através destas páginas, tortuosa, picaresca, imunda e fétida populosa, fanática, temerosa... Zimler mostra, neste contexto, as injúrias, torturas e mortes inflingidas aos judeus, homens, mulheres e crianças, actos a que os cristãos velhos apavorados são incitados pelos frades dominicanos, sob o pretexto de que o sacrifício dos marranos, cristãos-novos, seria a solução para limpar a cidade de pecados e trazer dias melhores. Não é fácil sacudir algumas das imagens...

O horror nestas páginas surge, porém, contrabalançado por um ambiente de busca "policial" e por muitas expressões de generosidade, de amor fraternal, de amor pela família, de cepticismo religioso ou, pelo contrário, de convicção, de busca pelo equilíbrio e paz interior, apresentando o judaísmo sob uma luz que parece perdida, a tantos séculos de distância e quando a questão de Gaza está nas notícias todos os dias e não deixa bem vistos os Israelitas (nem os muçulmanos). Um facto curioso? Judeus e muçulmanos são quase aliados, nesta Lisboa em que o cristianismo fanático se volta contra os judeus. O melhor amigo, irmão do coração de Berequias é Farid, jovem poeta muçulmano muito belo, homossexual e surdo-mudo. Berequias é salvo do massacre por outro muçulmano. Os judeus de Lisboa sonham com Constantinopla, hoje Istambul, onde são muito bem recebidos e muito bem considerados pelo sultão...   

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