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segunda-feira, 14 de julho de 2014

O que soube o Zé

Zé-Pé-Frio, antes Zé-Pé-Chato, e antes disso Zé-Bébé, sabia de conhecimento certo que se lhe acabara o calor no corpo, abalado para nunca mais voltar, no momento em que morreu o outro, bigodaças meio adoidado gémeo de outra mãe e de outro pai, nascido na terra com ele, há mesma hora mas com benção de parteira, por ter a mãe do outro começado a gritar que se lhe rasgavam as partes cinco minutos mais cedo do que a sua. A sua, atrasada na gritaria, pariu-o sozinha e achou-o tão lento na descida, tão mau na saída e tão feio à vista, se calhar turva de tanta hora a empurrar e rasgar, que Zé não lhe conheceu teta nem colo, nem irmão nem irmã. Ali começou e fechou a linha de produção.

No dia em que lhe morreu o seu único inimigo, sentiu Zé, nessa altura Pé-Chato, que lhe fugiam pelos dedos os calores, e soube de certeza certa que já se tinha ido o filho da mãe que lhe aquecia de ódio as entranhas. Aquecia-as bem quentes a recordação de cara ou nome, desde o dia em que, por umas lágrimas que um joelho roto lhe causara, o outro lhe colara a muito repetida alcunha Zé‑Bébé, sabendo que ele mãe não tinha desde que a sua se fora para França, às cavalitas de um doutor que, dizia-se à boca cheia na aldeia toda e o pai dentro de casa, num instante a faria puta, que puta já ela era na alma, quem nem teta dera ao filho, dava-a agora as duas ao doutor, depressa as daria a outros.


Morreu o outro de velho, caiu como caem os pêssegos maduros dos pessegueiros, e deixou Zé o nome que era seu desde que lhe calhara ser chamado à tropa de África com o outro, ficara o outro perfeito para a guerra e ele apeado, por lhe serem chatos os pés e difíceis de calçar. Com a mesma língua de cobra do mato, o outro espalhou notícia e nome aos quatro ventos e Zé foi Pé-Chato daí em diante, nos sapatos brilhantes do casório e das missas de Domingo, nas botas de trabalho, nas chinelas, nos olhares que deitava ao outro quando regressou, primeiro herói, depois meio doido nos gritos que à noite chamavam os cães ao uivo desenfreado, nos estalos e socos se alguém lhe pousava de surpresa uma mão no ombro. Deixou de ser Pé-Chato para ser Pé-Frio porque, morto o outro, de quando em quando o sacudia um arrepio de intenso, como se subisse à serra de camisa em Janeiro. Apagara-se-lhe meia chama, a acalmia, verificou, era coisa sem calor e sem graça. 

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