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sexta-feira, 21 de março de 2014

saia florida

Depois da terceira leitura a compositora continuava a não encontrar a alma daquilo. A mancha gráfica ao centro parecia bem mas distraía-a, tudo alinhadinho com tanto cuidado que oferecia a ilusão de uma coisa compacta. Nos versos também estava tudo direitinho, tudo certinho, a rima devidamente interpolada, umas imagens bonitas pelo meio, uma certa musicalidade que lhe faria a tarefa fácil. Mas lera e relera e não conseguia descortinar nem gargalhada, nem gume, farpa, esquina, cova funda, topo brumoso de onda, tempestade, soco ou beijo apaixonado, nada que lhe enrugasse as letras. Era coisa rasa e morna. 
- É bom, não é?
- Pois... mais ou menos.
A cantora deitou-lhe um olhar mais feroz do que o seu texto, e ela zangou-se com essa sua mania de resistir a vender o brio. Orgulho não pagava a escola da mais velha.  
- Está bem, dá-me uns dias e faço-te um arranjo para isto. 
- Vá. Liga-me quando estiver. - Um sorriso. Devolveu-o amarelado. A cantora levantou-se - Vai ser um sucesso, vais ver.
A outra afastou-se, cabelo da cor do fogo que lhe faltava nas palavras, saia florida enrodilhando-se nas pernas. Decidiu que as detestava, e aos cabelos vermelhos e às canções que punham comida na mesa. Dobrou a folha ao meio e meteu o sucesso anunciado entre as páginas do caderno. Seria um hit, não duvidava, na voz florida dela. Seria um pequeno estouro, veloz e sonoro. E caduco. Morto antes de nascer, de uma doença sem remédio.
Pelo menos ia ser fácil, a chatice, tão fácil de fazer como de esquecer.

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