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segunda-feira, 17 de março de 2014

quase

Percebe a quase ausência quando se instala no sofá. Fica surpreendidaprimeiro, depois solta uma gargalhada. Até que enfim, estava a ficar cansada de trazê-lo com ela, quase uma sombra mas não tanto, quase a memória de uma ausência mas nem isso, não há ausência sem presença. Um corpo hipotético, talvez, onde estava o lençol liso e vazio, mais vazio nas horas fundas da noite. Os corpos imaginados só incomodam então, quase incomodam mas não chegam a roubar o sono, por encerrarem todas as possibilidades e nenhuma. Mas agora a fantasia fora-se, um alívio, como esticar o pequeno vinco que não doi mas aborrece. 

Roda o copo na mão para fazer tilintar o gelo, antecipando  a mordedura do álcool na língua, e respira de alívio. Ele nunca chegou a morder-lhe a língua, lembra. Sacode a cabeça, rindo-se outra vez de si próprio. Não poderia, as ideias  só ferram os dentes no sossego de uma mulher ao despertar e deitar. A gargalhada reproduz-se e dá por si a rir por longos instantes. O momento é perfeito, está mais satisfeita consigo do que se lembra de estar em meses. Já calou todas as palavras que um dia quase planeou dizer, todo o desejo que quase sentiu. Pode agora ficar a sós, como deve ser. Ou não. A ocasião é para celebrar. Com gestos precisos faz deslizar a lista telefónica privada no ecrã do telémovel. Pára num nome com muitas letras. Sorri. Isso. Gosta desse nome e das letras que o compõem.

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