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domingo, 16 de fevereiro de 2014

O que não foi

Ficam lá, as coisas que não foram, mas não ficam quietas. Levam muito tempo a acomodar-se. Antes de se conformarem a ser coisa nenhuma, gritam-nos. Argumentam e prometem, imploram, reclamam, seduzem-nos. Querem ver-nos sacudi-las para ver o que sai de dentro e que dobras podem produzir na nossa vida, se a multiplicam ou nos mordem um pedaço do tempo que não volta e não serve. Na verdade não há nada lá dentro a não ser o que ficou para trás e se fez inútil. Mesmo quando se lhes acaba a voz, o silêncio que a substitui grita uma pergunta sem resposta. É mais ruidoso, mais violento assim. Não há silêncio se este é pesado e fremente, cheio de esquinas e recantos, padrões de luz e escuridão, da dolorosa a mudez de boca escancarada das ideias por formar e das vidas por viver. 

E se por fim o ruído te ensurdece, as coisas por ser continuam a estender de quando em quando as suas sombras. São disformes como roupas sem corpo dentro e moldam-se ao chão. Tocam-nos nos dedos dos pés e quase nos parecem frescas. Quase nos parecem doces. Parecem-nos tremendas. Parece que vão trepar-nos pelas canelas e engolir-nos. Temos medo, porque das coisas que não foram sobra sempre apenas a pele fina como papel de arroz e o espaço vazio onde não cresceram. Podemos perder-nos lá dentro. Encolhemos os dedinhos e elas recuam, mas permanecem quase lá, fantasmas entre os dedos, o ar esgaçando-se onde ainda se recusam a não existir. Uma vez e outra repetem o avanço. Vão-se-lhes as forças, ficam cada dia mais longe dos dedos dos pés, depois são sombras de meio dia. Não as vemos e o estrondo dos palácios de papel rolando encosta abaixo deixa de assombrar-nos. 

Um dia desistem. Não. Desistimos nós delas e da sua memória. Já descobrimos outras coisas para não ser.

imagem em:http://www.drchuckdegroat.com/2010/01/shadows-and-realities-how-god-wants-us-whole/

O ano que passou foi de esperanças incumpridas. Abandonei projectos. Outros não o foram mas estão irreconhecíveis. Até o monster, coisa sem relevância, eu pensei em abandonar. Está meio abandonado, pelo menos naquilo que ele era. O perfil do facebook, os meus vestígios no mundo que mal me conhece e não me sentiria a falta por mais do que os dois minutos que leva a ler esta publicação. Outras coisas tenho a meio gás ou menos. A escrita. A vida. O corpo. A alma. 

Leio o que escrevi e tenho vontade de rir-me de mim própria. Porque soa a lamento mas não é. Não sou dada a grandes desânimos e o meu dia a dia corre como se continuasse a saber para onde vou. Sei que é para a frente, seja isso onde for, e de queixo erguido. Há anos que raramente olho para trás, não serve de nada, e sobram só sombras destas para me irem assombrando com "e se...". Para a frente neste caminho. Se vai levar-me a algum lugar ou me estampo numa parede, logo vejo. Está um bocado de nevoeiro e não vimos equipados com faróis.  

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