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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

bom dia e um copo de plástico

Todos os dias e olhava ao espelho e podia jurar que nesse dia estava diferente. Demorou-se um bocadinho, na esperança de conseguir perceber o que a distinguia. Nada. Usava o cabelo da véspera, lavado mas igual, os mesmos olhos, nem a  roupa era nova, há quanto tempo nada era novo nela. Acabou por sair para cumprir um dia que havia de perder-se no múrmurio das semanas, que se esbatiam no rumor dos meses, no rugido dos anos que passavam. 

Percebeu enquanto ligava o carro e a de repente a música da sua rádio habitual encheu o vazio que não havia vazio. Baixou depressa a palha e escutou os olhos nos espelho. Sussurraram-lhe palavras de sensação nova. Não se entendeu e por isso assustou-se. Depois meteu a mudança e avançou para o dia porque o dia não esperava pelos seus medos. Seguiu com os cuidados costumeiros a avenida traiçoeira que nunca a apanhava desprevenida porque se precavia e demorou o dobro do que demoraria se conduzisse como uma doida. Ou metade, ou talvez nunca chegasse porque por ali os acidentes eram muitos e às vezes via uma cobertura preta sobre uma forma longa à beira da estrada, entre o frenesim das ambulâncias e o desalento dos socorristas. Estacionou no seu lugar no piso de cima, onde daí a pouco o sol daria com força. O carro ia parecer um forno quando saísse. 

Ajeitou o cabelo nos ombros, estaria comprido demais para uma mulher da sua idade? O ex-marido gostava dele assim, mas há quantos anos fora isso? Era nova, então, e às mulheres novas assentam bem os cabelos longos. Alisou a saia automaticamente um instante antes de abrir a porta que dava para o open-space. Disse bom dia e responderam-lhe vozes indistintas. Não estava atrasada, mas havia quem já trabalhasse. Encontrou o seu lugar arrumado como o deixara na véspera, cada coisa no seu lugar, como gostava, os papéis numa pilha certinha, as canetas e lápis no porta-canetas de pele. Ligou o computador e recostou-se. Olhou para a direita. Sorriu. Ao canto da secretária, como se temesse incomodar, um copo alto da Starbucks fazia promessas. Rodeou-o com as mãos, sentindo-se quante por dentro. Era a segunda vez que a manhã começava assim, com uma surpresa. Não sabia quem lho deixara na véspera e não sabia quem lho deixara hoje, decerto a mesma pessoa. Mas sabia o que dizia o copo de plástico silencioso. 

"Eu vejo-te. Gosto de te ver. Bom dia. "

O sorriso alargou-se mais no seu rosto. Voltou-se para o ecrã para digitar a password e levou o copo à boca. 

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