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domingo, 29 de dezembro de 2013

guerreiro



três portas abaixo há um homem que traz com ele sempre o mesmo jornal de há cinco anos debaixo do braço, e é velho, daqueles que noutro tempo cumprimentam as senhoras ao passar e se tivessem chapéu o tiravam e acenavam com a cabeça, vem com o jornal e senta-se sempre à mesma mesa ao pé da janela, com vista para um fontanário que em novo lhe servia para molhar a cabeça entre um e outro jogo de futebol, mas depois foi fechado e selado e agora enfeita a rua com memórias inúteis de tempos de rapaz. senta-se à mesa e pede há anos o mesmo café pingado e o mesmo copo de água e o mesmo pastel de nata que não come mas fica ali como dantes à espera da mulher que vinha com o saco do pão e há de demorar agora uma eternidade a chegar, que os mortos andam devagar

vem com o jornal velho e lê pela manhã fora as notícias de ontem de há cinco anos com o espanto de hoje, esquecido todos os dias do pão que alguém há-de levar a casa quando estiver a regar as flores da sacada, a útima coisa que lhe pediu a mulher "não deixes morrer a sardinheira" a sardinheira está viva e a mulher há cinco anos na gaveta. há-de chegar-se o rapaz do padeiro estender-lhe o saco e receber as moedas sem dizer nada nem os bons dias sem tirar o boné de pala para trás quase sem olhar para ele se calhar assustam-no os nós grossos nos dedos a rigídez trémula com que lhe estende o dinheiro 

lê as notícias e murmura uma perplexidade repetida, tira a mesma velha Bic para as cruzadas a que faltam as três palavras de ontem de há cinco anos quando vieram chamá-lo e ele foi enterrar a mulher dois dias depois de vê-la caída à porta da padaria não se lembra do corpo só do pão redondo como os seios dela antes do tempo lhes roubar a alegria espalhado no passeio 











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