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sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A Mulher Casa - Tânia Ganho

Tenho dito muitas vezes que os livros nos agradam ou desagradam, nos tocam ou repelem por muitas razões, estéticas ou pessoais, e que a nossa leitura deles até pode depender do momento em que lhes pegamos. Por vezes há razões muito claras para amarmos uma leitura, outras elas são exclusivamente emocionais - e viva os guilty pleasures! Noutros casos, a linha entre as duas coisas é tão estreita, que não precisamos de, ou sabemos, fazer a distinção.

Este livro apanhou-me de surpresa e quase obliterou a capacidade para decidir. Sabia, pelas opiniões, que seria um bom livro, bem escrito, e nesse departamento não tenho nada a dizer: é um bom livro, bem escrito. Não, não é assim: é um muito bom livro, muito bem escrito. O que eu não sabia, não podia prever, era que a leitura se tornaria ao mesmo tempo difícil e compulsiva, por motivos tão pessoais que escrever esta opinião é quase impossível. 

O livro transpira uma tristeza doce e muito quieta, quase muda, que, confesso, não sei se está nas suas páginas ou nos olhos com que as li. De certa forma, ou de muitas formas, Mara sou eu. Se calhar, é um pouco cada mulher, mas eu não vivo a vida das outras mulheres, nem estou dentro das suas almas para saber até que ponto se reconhecem nela. Não temos uma vida semelhante, Mara e eu, não temos trabalhos nem maridos semelhantes, não há outro amor ou uma infidelidade para encher as páginas da minha vida de culpa ou melancolia, mas estive nesta leitura de forma angustiada, por ver nas páginas tantas das coisas que a minha cabeça ultra-analítica sabe sobre a vivência feminina, a minha também, tanto que, ao longo dos muitos anos de vida, de casamento e maternidade se vai sentindo, até se reclamar, como Mara, um lugar enquanto mulher, o direito a ser mais do que um elemento a viver em função dos outros. 

Preparem-se, porque eu não estava, para reconhecer a sensação de solidão e invisibilidade, de desespero, de ser apenas um móvel (ou uma casa), de ter soterrado a mulher dentro da profissional, da esposa, da mãe. Para reconhecer as dificuldades impostas a um casal pela rotina construída em torno de filhos e trabalho, o muro de silêncio que se constroi, o receio de se ter crescido em sentidos diferentes, como duas estradas paralelas que, a dado momento, formam um V e se vão perdendo de vista. Reconhecerão o anseio de ser vistas, reconhecidas, apreciadas, desejadas, amadas, de sentir que ainda o merecem, que ainda são interessantes. São pequenos aspectos queas mulheres questionam e calam, insistindo nas suas vidas com a tenacidade que advém da teimosia, do medo, mas sobretudo do amor pelos seus.

Na base de tudo está o medo, creio. Sempre pensei que escreveria um dia sobre ele, este medo visceral de existir e falhar, mas talvez já não faça sentido: está feito, e muito bem feito. Não gosto da motivação quase freudiana que a autora lhe deu, no final, porque acho que é muito mais complexo, não cresce de um acontecimento só. Cresce de uma vida de insegurança, a temer nunca ser suficiente, nunca passar da mediania, ser a "modista" e nunca a "artista", ser a mãe imperfeita, ser a pessoa errada... Não vou de avançar mais nesta linha dolorosa, a não ser para dizer que, mesmo quando Mara me irritou ligeiramente, a entendi sempre, seja porque a autora teve a virtude de tornar todas as suas acções compreensíveis, ou porque me revi em muitas delas, como terá acontecido, decerto, com muitas outras mulheres. Confio que nem todas se reconheçam assim na personagem e, como tal, a leitura será menos sofrida para muitas, mas nenhuma mãe deixará de recordar algum momento em que se sentiu sufocada pela exigência imediata e absoluta da maternidade, por exemplo. 

O livro oferece muito mais, claro, oferece um retrato de Paris feito de dentro para fora, e que vai por isso muito além da imagem poética que o turista traz. É belo, belíssimo, e sujo ao mesmo tempo, rico e miserável, cheio de contrastes, nem sempre agradáveis. Oferece também uma imagem da França política - dos podres que nós fomos vendo nas notícias, vistos através dos olhos de Mara, meio dentro, meio fora. Confesso que França não me fascina, conheci Paris quase por acaso e, embora tenha achado lindíssima, não me imaginava a viver lá. 

Tenho que recomendar a leitura a... a todos. Mas mães, esposas, mulheres, leiam com prudência. Começa devagar e, de repente, foram atropeladas. 


3 comentários:

Anónimo disse...

Li este livro o ano passado e tornou-se um dos meus favoritos do ano.
Mesmo não sendo eu esposa e mãe o livro tocou-me imenso. Na altura usei para descrever este livro a palavra real, porque faz com que a personagem seja cada uma de nós, nós tornamos-nos na personagem e vivemos o que ela vive. :)

bjs*

Cristina Torrão disse...

Belo texto, Carla, que me deixou ainda mais curiosa quanto a este livro. Tens realmente o dom de transmitir emoções (neste caso, as emoções que este livro te provocou) e que eu confirmo, como leitora beta ;)

Continuo a gostar do que estou a ler. Mas são muitas páginas, ainda vais ter de ter um pouco mais de paciência, até receberes a minha opinião ;)

helena frontini disse...

Excelente apresentação!
Bom fim de semana.