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sábado, 15 de junho de 2013

Ando com o coração pesado

Não é com frequência que faço aqui no blogue nenhum tipo de desabafo. Ultimamente, porém, ando com o coração pesado, tão pesado que por vezes desata a bater de forma irregular. E ando cansada, como nunca estive na vida - não é do corpo, deve ser a alma.
 
Escolhi para a minha vida uma profissão difícil. Ingrata em tantos aspectos, que mesmo perante os poucos que tinha de positivo eu hesitei. Depois juntei-lhe outra actividade, não posso chamar-lhe profissão, igualmente ingrata. E agora juntaram-se as duas à esquina. Não falo hoje sobre escrita, embora seja essencialmente sobre isso que é este blogue. Em dia de manifestação e no meio das greves, é sobre ser professora que falo.
 
Sou professora há dezassete anos. Estive em muitas escolas, melhores, piores, anualmente, depois com concurso obrigatório de 3 em e anos, depois de 4 em 4... já não sou contratada, tão pouco efectiva em agrupamento, sou QZP, nem carne nem peixe. Já tive o prazer de acompanhar turmas em todo o seu percurso pelos 3 anos do ciclo,  sentir que formava gente e deixava alguma coisa feita. A maioria das vezes, porém, estou de passagem, faço o que posso com o que recebo, para os deixar maiores e melhores ao fim do ano.
 
Nunca tive menos de 6 turmas. Este ano tenho 9. Não, não sou professora de Música, nem de EV, como sugeria alguma cabeça inteligente na TV., como se lecionar essas disciplinas fosse uma coisa melhor. É assim que se vê a arte neste país. Ensino Inglês. Sim, uma dessas disciplinas práticas, de continuidade, essenciais no mundo actual, de que os alunos vão precisar sempre. Devia ter tempo para trabalhar com eles, não é? Para a oralidade, para a escrita, para tudo. Mas o tempo não estica, embora tenha esticado ao limite a minha energia. É que são muito mais de 200 alunos, cujos nomes, características e fragilidades conheço, porque é a única forma de conseguir ensinar alguma coisa. Não chego a todos, claro que não. Sou massa de pão, vai esticando, esticando, mas inevitavelmente rompe nalgum lado.  
 
Todas as semanas tive, ao longo deste ano, fichas, composições, trabalhos para corrigir. Podia não os ter pedido, mas os alunos precisam de aprender e o meu trabalho é ensinar. Em fase de testes, a pilha tem vinte centímetros de altura. É caso para acabar uma turma e dizer, "Uma já está, faltam oito." O mesmo na altura de avaliar, de lançar notas, de escrever sinteses individuais, no momento das reuniões, que chegam às cinco por dia. Junta-se o facto de ser diretora de turma, com tudo o que isso implica em termos de contacto com os encarregados de educação, de papelada, de acompanhamento de atitudes e comportamentos, etc, etc. E de ter outras reuniões, de grupo, por exemplo.
 
Se me sobra para elaborar fichas individuais? Faço-o quando posso, muito menos este ano do que em anos anteriores. Mesmo assim, vou fazendo, com recurso ao meu tempo em casa, aos meus materiais, ao meu computador, ao meu tinteiro, às minhas folhas (como acontece muitas vezes com actas, relatórios, sinteses, etc). Faço-o, porque entre os meus muitos alnos, há os especiais, há um chinês que não fala português, e mais dois que, no 8º ano, nunca tiveram inglês, e ainda outros com necessidades especiais, para os quais pelo menos os testes têm que ser diferenciados. Isto tudo faço eu, com a minha colega, não encomendo a empresas vindas de fora. Trabalho muito, como sempre trabalhei, tanto que os meus filhos protestam que professores, nunca. É que eles são alunos, e sabem exactamente quanto trabalho os alunos dão na aula. O quanto pode ser cansativo fazer com que 20, 25 ou 30 jovens nos ouçam, quando todos, mesmo os melhores, preferiam estar noutro lado a conversar ou a brincar.  Os meus não são dos piores nesse aspecto, mas mesmo assim é esgotante quase todos os dias. Que dizer dos professores nas escolas problemáticas, com alunos de navalha na algibeira? É diferente das outras profissões, sim, muito diferente. Mas quem é que atenta nisso? O que importa? Professores não são gente.
 
O governo diz que os professores não trabalham o suficiente. Insinua, para quem quiser ouvir, que não gostamos de trabalhar, que o que queremos é ter privilégios. Não vejo onde é que estão esses privilégios, quando a maioria de nós trabalha tanto ou quase como eu, e ganha menos a cada ano. Muitos outros, um pouco como eu, não sabe onde estará no futuro, a 10 km, a 100? Há  pior, porque os há contratados, com 30, 35 ou 40 anos, que nem a uma família têm direito, porque tempo e dinheiro se esgota a viajar pelo país para poderem trabalhar. É assim noutras profissões? Sim, mas são consideradas privilegiadas? Não. Passa-se a imagem de muito tempo livre, porque os horários são diferentes. São, mas vivemos "ao toque", empurrados pela exactidão do momento da sineta. Não há urgências a meio de uma aula, nem uma desatenção de 3 minutos porque estamos exaustos, nem um atraso de 5 de manhã. E, como disse, 90 minutos com 30 alunos podem ser mais esgotantes como um dia inteiro em frente do computador. Cada vez mais turmas têm 30 alunos, mas às vezes bastam 20 para dar cabo de nós. Por vezes basta que chova, ou faça sol, ou se zanguem no intervalo e venham de mal com a vida, e já não são os mesmos. São impossíveis.
 
Temos muitas férias? Não, os alunos têm-nas, nós continuamos a trabalhar, temos os mesmos dias da restante função pública. Comparecemos na escola diariamente e, como noutras profissões, cumprimos as tarefas, umas mais intensas, outras menos, que a gestão determina necessárias. Organizamos o ano seguinte, por exemplo, com o olho em tudo o que de novo os cérebros do ministério tenham inventado durante o ano anterior, novas metas, novos programas, novas terminologias. Mereciamos mais férias, sim, que quando acaba o ano letivo estamos de gatas. Outras profissões são cansativas? Sim, mas são consideradas privilegiadas? Não. Tenho mais dois dias do que o meu marido, que trabalha no privado, se não tiver faltado vez nenhuma (e não falto). Mas ele, se estiver doente, avisa e não desconta automaticamente nas férias. Eu desconto, ou vou ao médico e tenho atestado... e não recebo esses dias. É assim o meu "privilégio". Não é uma queixa, é um facto.
 
É assim a profissão que escolhi, sem privilégios. Mas se os tivessemos, eram merecidos. Os professores constroem, a muito custo e contra todos, a base de uma sociedade. Contra, inclusive, quem os gere, que a cada ano muda intenções e procedimentos, experimenta e falha, como se trabalhasse com argila e não com a massa humana que, um dia, estará à frente dos destinos de Portugal. Não falo de nós, professores, mas dos alunos, dos jovens desanimados e agitados que nos cabe ter dentro das salas. Para os quais precisamos de um animo e energia que começa a faltar-nos. Estamos esgotados, zangados, preocupados. Olhamos à volta e vemo-nos empurrados, desrespeitados, denegridos, injuriados. Não pelos nossos alunos, mas pelos nossos chefes - os que nos governam a todos - e pelos que um dia passaram pelas cadeiras da escola e já se esqueceram como foram difíceis, enquanto alunos, e quem lhes abriu os olhos para o mundo, às vezes à força, quem os ensinou a fazer as contas para poderem gerir as suas casas, e a ler e escrever, para não serem enganados e poderem, quanto mais não seja, assinar documentos. Ou como eu, Inglês, para se entenderem lá fora, quando o governo que nos amachuca os manda emigrar.
 
Já fui professora com muito orgulho, já foi uma profissão de amor. Hoje não tenho esperança. Trabalho por brio, necessidade, e pelos meus alunos. Porque é por eles que continuamos a abrir caminho nesta lama, e a dar o nosso melhor, quando estamos na escola ou fazemos greve.

4 comentários:

helena frontini disse...

Como compreendi e senti cada palavra. Ensino há 20. Ontem, por exemplo, comecei o dia às 8, 30h, dei aulas a "sério", despedi-me de muitas turmas, preparei reuniões, participei em reuniões, retirei dúvidas para o exame de segunda-feira, ajudei na preparação da festa de final de ano e nela estive até à uma e meia da manhã entre vender rifas, conversar com pais, rever ex-alunos e com muita dor de pés á mistura. Estou de rastos, mas é isto que quero fazer, pelo menos até à reforma.

Anónimo disse...


Com dois miúdos no ensino secundário, revejo essa dedicação e empenho em cada um dos seus professores, (nem sempre foi assim em todas as escolas por onde passaram).Por tudo o que plantam em cada um deles, terão sempre o meu agradecimento e admiração. É com orgulho que vejo a minha filha levantar-se em defesa da atitude dos seus professores perante a greve, ainda que daí venha algum prejuízo para ela no dia dos exames.

Carmo

Olinda Gil disse...

Espelhaste tão bem...

Cristina Torrão disse...

Muito bem!
Desprezar o ensino e os professores é das piores coisas que um governo pode fazer. É comprometer o futuro.