O artista sentou-se e contemplou a obra. Cada recta,
cada curva, cada côncavo e convexo de mármore polido transpirava a elegância
pujante de Michelangello, a paixão de Bernini, a estranheza de Giacometti. Era perfeita, o trabalho de uma vida.
Deslizou um dedo pela curva delicada de uma coxa
pétrea e suspirou. Amava os corpos retorcidos de pedra. Odiava-os. Odiava o fôlego breve que se soltava dos
lábios pálidos da mulher, os olhos vazios que se perdiam na eternidade, a flexão da
cintura sobre um braço forte. Odiava o braço forte que a cingia com amor, ele próprio uma voluntária prisão. Perdera para a estátua a sua alma, com o suor que vertera
nela, desde o dia em que o bloco de pedra chegara e começara a desbastá-lo. Cada
vibração do escopro sobre o mármore, cada passagem da lixa suave, a lixadeira
eléctrica cantando suavemente nas suas mãos, deixara um pouco mais dele preso
na pedra. Agora nem estátua nem alma lhe pertenciam. Pertenciam ambas ao senhor
da sua terra. Estava duas vezes preso.
Viera na véspera, trazido pelos rumores de que algo
de extraordinário nascia na sua oficina. Contemplara a obra com indiferença fingida.
Fizera um gesto e o homem por trás dele abrira a tampa do computador e ditara
uma ordem. Obedecera, atirando-lhe os números da sua conta como quem lança
punhais. Não sabia quanto lhe tinham pago, provavelmente uma pequena fortuna.
“É o que vale a minha liberdade?” pensou.
Desceu com violência uma palma ardente sobre a pedra,
e o seu coração rebelou-se, virou-se
sobre si mesmo, vomitou fel. Lembrou-se que mesmo sem alma, sentia. Pertencia a
si mesmo. E decidiu.
Primeiro fez a mala.Parou a meio. Se partisse,
viriam buscar a sua família. Depois os seus amigos. Desfê-la com mãos ansiosas,
a mente num turbilhão. Fá-lo-ia de outra forma, uma em que a liberdade da sua
alma não custasse a prisão dos outros. Desceu para a oficina e sentou-se outra
vez em frente da obra. Pensou. Levantou-se, com passos lentos circulou em torno da pedra, estudou-a. Os
dedos tocando, procurando. Descobriu-os. Foi buscar o mais fino, o martelo. Com
toques precisos abriu linhas finas onde as linhas finas não seriam vistas. Uma,
duas, uma vintena. Pousou o escopro, com o coração ao mesmo tempo pesado e leve
e disse adeus.
Era coisa de dias, de semanas. Na manhã seguinte
viriam buscar a obra. No outro depositá-la-iam onde quer que o senhor quisesse
tê-la, e em breve ele chamaria amigos e inimigos para contemplar a
preciosidade. Era melhor que fosse rápido, ou não teriam nada para ver. Dentro em pouco a primeira linha que ele
abrira alargar-se-ia, far-se-ia um abismo, e soltaria um pouco da sua alma
presa, um sopro apenas que encontraria o seu caminho para casa. Uma a uma todas as fracturas cederiam, rasgando a carne morta da obra. Desejou
poder segurá-la com fios finos como teias, reter-lhe a forma. Mas a forma inteira
era também a sua prisão. A morte da estátua era o preço da liberdade. Quando o seu destino o encontrasse, pelo menos estaria inteiro e de cabeça erguida.
Quando a obra jazia no chão do seu palácio, desfeita
e inútil, o senhor mandou buscá-lo. A
sua mulher chorou, lançou-se em súplicas aos pés do algoz. Abraçou-a e sussurrou-lhe ao ouvido. Ela olhou-o nos olhos e assentiu. Sorriram-se.
Levaram-no na
carrinha preta dos condenados. Enfrentou
de sorriso nos lábios a fúria do amo.
- Não. - disse, recusando-se a reproduzir a obra - A
cópia não substitui o original.
- Pagarás a tua teimosia com a vida? - quis saber o
senhor.
- Pagarei com o quiserdes. Mas serei livre.
Os capatazes do senhor invadiram o seu estúdio, à
procura de retribuição para a obra destruída.
Encontraram-no vazio de peças e de gente. Arrasaram a casa, queimaram-na.
Levaram outra vez o artista na carrinha preta dos condenados. Foi fuzilado no
centro da praça. Não tremeu, não procurou a mulher ausente com o olhar. Ela não
estaria lá.
As gentes observaram, silenciosas, os olhos inflamados na mudez, e seguiram para
as suas vidas. Entre elas, as linhas finas da fractura de amanhã.
Sem comentários:
Enviar um comentário